terça-feira, 26 de junho de 2018

O Passeio de Santo António - Augusto Gil

"O Passeio de Santo António" é um das poesias que sei de cor desde muito miúdo.A minha irmão mais velha aprendeu o poema para o recitar numa ocasião festiva de que já não me lembro as características. De tanto a ouvir repetir o poema, também eu acabei por o saber de cor. Foi por este poema que acabei por saber, sem compreender bem as implicações, que "amor sem casamento" deve ser mal visto pela igreja. E então o namoro? e o noivado?

O PASSEIO DE SANTO ANTÓNIO
Saíra Santo António do convento,
A dar o seu passeio costumado
E a decorar, num tom rezado e lento.
Um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando…

E andando, andando, viu-se num outeiro
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, bem puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo

O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais…
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito;
Ela trazia ao ombro a cantarinha,
Ele trazia…o coração no peito.

Sem suspeitarem que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
—  Oh frei António, o que foi aquilo?...

O santo erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
— Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada…

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou em notas de oiro no caminho.
— Ouviste, frei António? Ouviste agora?
— Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho…

— Tu não está com a cabeça boa…
Um passarinho a cantar assim!...
E o pobre Santo António de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
— Se o Menino Jesus pergunta mais,
…Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!

E voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: — Jesus,
São horas…
E abalaram p’ró convento.

Augusto Gil

domingo, 24 de junho de 2018

C'est l'aviron - Norman McLaren

Uma recordação dos meus tempos do Liceu Dom João de Castro: Uma sessão de filmes de Norman Mc Laren incluindo filmes experimentais e nações ilustradas. O meu entusiasmo foi imenso e nunca esqueci as audácias de McLaren, incluindo o desenho na própria película e outros. Só muito mais tarde, já casado e com filhos, é que tentei imitar McLaren fazendo ou tentando fazer alguns metros de desenhos em película. Não me saí mal de todo, mas não investi muito tempo nessa actividade. Uma das obras, talvez não das mais representativas, de McLaren é o filme que ilustra a canção tradicional canadiana "C'est l'aviron" ou "M'en revenand de la jolie Rochelle". No sítio do Office National du Fil de Canada, é possível encontrar o filme de McLaren e ler o comentério sobre esta obra.

https://www.onf.ca/film/cest_laviron/

Eis a letra da canção:

C'est l'aviron qui nous mène  - Norman McLaren
    M'en revenant de la jolie Rochelle  (bis)
    J'ai rencontré trois jolies demoiselles.

    Refrain :

    C'est l'aviron qui nous mène qui nous mène
    C'est l'aviron qui nous mène en haut.

    J'ai rencontré trois jolies demoiselles  (bis)
    J'ai point choisi, mais j'ai pris la plus belle.

    J'ai point choisi, mais j'ai pris la plus belle  (bis)
    J'la fis monter derrière moi sur la selle

    J'la fis monter derrière moi sur la selle  (bis)
    Je fis cents lieues sans parler avec elle.

    Je fis cents lieues sans parler avec elle  (bis)
    Au bout d'cents lieues, elle me demande à boire.

    Au bout d'cents lieues, elle me demande à boire  (bis)
    Je l'ai menée auprès d'une fontaine.

    Je l'ai menée auprès d'une fontaine  (bis)
    Quand elle fut là, elle ne voulut point boire.

    Quand elle fut là, elle ne voulut point boire  (bis)
    Je l'ai menée au logis de son père.

    Je l'ai menée au logis de son père  (bis)
    Quand elle fut là, elle buvait à pleins verres.

    Quand elle fut là, elle buvait à pleins verres  (bis)
    À la santé de son père et sa mère.

    À la santé de son père et sa mère.  (bis)
    À la santé de ses soeurs et ses frères.

    À la santé de ses soeurs et ses frères.  (bis)
    À la santé d'celui que son coeur aime.


O filme é apresentado na mensagem precedente.

C'est l'aviron by Norman Mclaren

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Canções do maluco

Há duas poesias de que já soube qual era o autor, mas cujo nome já esqueci. Buscas na internet não me esclareceram. Ambas são Canções do Maluco, e sei-as de cor há muitos anos. Como a reprodução dos poemas se baseia na minha memória, é muito possível que a reprodução não seja fiel, do que já peço desculpas.

Canção do Maluco 1

Ao luar, no meio da praça
o maluco pôs-se a contar a sua desgraça
Contava cantando com voz de galo
e toda a gente veio à janela para escutá-lo.

Disse o maluco que o luar
andava atrás dele para o matar.
Disse, e com medo atirou-se a um poço
com a mó dum moinho pendurada ao pescoço.

Calou-se o maluco, e é a mim, agora,
que o luar persegue pelas ruas fora.
E no rumor doce que sobe da água
A mágua que eu escuto é a minha mágua.


Canção do Maluco 2

Nem por aqui, nem por ali
o caminho me agrada.
Por um lado há bruxas,
pelo outro não se vê nada.

Meti ao acaso por um dos dois
e fui parar a um largo sem ninguém.
Nem por aqui, nem por ali
o caminho me convém.

Estavam cães esfomeados devorando o luar
e por aqui e por ali, até ao fim do mundo me deixei ficar.

sábado, 2 de junho de 2018

O menino da sua mãe - Fernando Pessoa

"O menino da sua mãe" é, para mim, um dos mais belos e impressionantes poemas de Fernando Pessoa, para não dizer da poesia portuguesa. Beleza formal, cada palavra no seu justíssimo lugar, um ritmo que condiz com o contexto. O poema é bem conhecido e eu sabia-o de cor, mas, como acontece com muitos outros, ultimamente tenho dificuldade em lembrar algumas palavras. Ei-lo:

Fernando Pessoa
O MENINO DA SUA MÃE


No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

 A palavra "apodrece" no penúltimo verso produz um choque. Já o "arrefece", no 5.º verso é muito mais suave, e a contradição entre a força das duas palavras contribui para o choque. Este pode ser antecipado pelo "ele é que já não serve", que é um modo pouco vulgar de referir um morto, mas é o facto, aliás natural, de apodrecer, logo seguido do nome carinhoso que a mãe lhe dera, que dá o tom trágico ao poema.