domingo, 8 de julho de 2018

Le Spectre de la Rose

 Eu tinha de memória só os dois último versos de uma quadra que vi num programa do ballet Le Spectre de la Rose a que os meus pais tinham ido assistir. Tentava recordar, sem sucesso, a totalidade da quadra. A partir duma curta metragem vista recentemente no canal Hollywood pude reconstituir o resto. A quadra é simples e muito bela. Recordo ainda que o mesmo programa tinha uma fotografia de uma rosa parecida com a que reproduzo, mas, em cujo centro se distinguia uma figura balética.



Soulève ta paupière close
Qu’effleure un songe virginal.
Je suis le spectre de la rose
Que tu as porté hier, au bal.



terça-feira, 26 de junho de 2018

O Passeio de Santo António - Augusto Gil

"O Passeio de Santo António" é um das poesias que sei de cor desde muito miúdo.A minha irmão mais velha aprendeu o poema para o recitar numa ocasião festiva de que já não me lembro as características. De tanto a ouvir repetir o poema, também eu acabei por o saber de cor. Foi por este poema que acabei por saber, sem compreender bem as implicações, que "amor sem casamento" deve ser mal visto pela igreja. E então o namoro? e o noivado?

O PASSEIO DE SANTO ANTÓNIO
Saíra Santo António do convento,
A dar o seu passeio costumado
E a decorar, num tom rezado e lento.
Um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando…

E andando, andando, viu-se num outeiro
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, bem puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo

O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais…
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito;
Ela trazia ao ombro a cantarinha,
Ele trazia…o coração no peito.

Sem suspeitarem que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
—  Oh frei António, o que foi aquilo?...

O santo erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
— Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada…

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou em notas de oiro no caminho.
— Ouviste, frei António? Ouviste agora?
— Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho…

— Tu não está com a cabeça boa…
Um passarinho a cantar assim!...
E o pobre Santo António de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
— Se o Menino Jesus pergunta mais,
…Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!

E voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: — Jesus,
São horas…
E abalaram p’ró convento.

Augusto Gil

domingo, 24 de junho de 2018

C'est l'aviron - Norman McLaren

Uma recordação dos meus tempos do Liceu Dom João de Castro: Uma sessão de filmes de Norman Mc Laren incluindo filmes experimentais e nações ilustradas. O meu entusiasmo foi imenso e nunca esqueci as audácias de McLaren, incluindo o desenho na própria película e outros. Só muito mais tarde, já casado e com filhos, é que tentei imitar McLaren fazendo ou tentando fazer alguns metros de desenhos em película. Não me saí mal de todo, mas não investi muito tempo nessa actividade. Uma das obras, talvez não das mais representativas, de McLaren é o filme que ilustra a canção tradicional canadiana "C'est l'aviron" ou "M'en revenand de la jolie Rochelle". No sítio do Office National du Fil de Canada, é possível encontrar o filme de McLaren e ler o comentério sobre esta obra.

https://www.onf.ca/film/cest_laviron/

Eis a letra da canção:

C'est l'aviron qui nous mène  - Norman McLaren
    M'en revenant de la jolie Rochelle  (bis)
    J'ai rencontré trois jolies demoiselles.

    Refrain :

    C'est l'aviron qui nous mène qui nous mène
    C'est l'aviron qui nous mène en haut.

    J'ai rencontré trois jolies demoiselles  (bis)
    J'ai point choisi, mais j'ai pris la plus belle.

    J'ai point choisi, mais j'ai pris la plus belle  (bis)
    J'la fis monter derrière moi sur la selle

    J'la fis monter derrière moi sur la selle  (bis)
    Je fis cents lieues sans parler avec elle.

    Je fis cents lieues sans parler avec elle  (bis)
    Au bout d'cents lieues, elle me demande à boire.

    Au bout d'cents lieues, elle me demande à boire  (bis)
    Je l'ai menée auprès d'une fontaine.

    Je l'ai menée auprès d'une fontaine  (bis)
    Quand elle fut là, elle ne voulut point boire.

    Quand elle fut là, elle ne voulut point boire  (bis)
    Je l'ai menée au logis de son père.

    Je l'ai menée au logis de son père  (bis)
    Quand elle fut là, elle buvait à pleins verres.

    Quand elle fut là, elle buvait à pleins verres  (bis)
    À la santé de son père et sa mère.

    À la santé de son père et sa mère.  (bis)
    À la santé de ses soeurs et ses frères.

    À la santé de ses soeurs et ses frères.  (bis)
    À la santé d'celui que son coeur aime.


O filme é apresentado na mensagem precedente.

C'est l'aviron by Norman Mclaren

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Canções do maluco

Há duas poesias de que já soube qual era o autor, mas cujo nome já esqueci. Buscas na internet não me esclareceram. Ambas são Canções do Maluco, e sei-as de cor há muitos anos. Como a reprodução dos poemas se baseia na minha memória, é muito possível que a reprodução não seja fiel, do que já peço desculpas.

Canção do Maluco 1

Ao luar, no meio da praça
o maluco pôs-se a contar a sua desgraça
Contava cantando com voz de galo
e toda a gente veio à janela para escutá-lo.

Disse o maluco que o luar
andava atrás dele para o matar.
Disse, e com medo atirou-se a um poço
com a mó dum moinho pendurada ao pescoço.

Calou-se o maluco, e é a mim, agora,
que o luar persegue pelas ruas fora.
E no rumor doce que sobe da água
A mágua que eu escuto é a minha mágua.


Canção do Maluco 2

Nem por aqui, nem por ali
o caminho me agrada.
Por um lado há bruxas,
pelo outro não se vê nada.

Meti ao acaso por um dos dois
e fui parar a um largo sem ninguém.
Nem por aqui, nem por ali
o caminho me convém.

Estavam cães esfomeados devorando o luar
e por aqui e por ali, até ao fim do mundo me deixei ficar.

sábado, 2 de junho de 2018

O menino da sua mãe - Fernando Pessoa

"O menino da sua mãe" é, para mim, um dos mais belos e impressionantes poemas de Fernando Pessoa, para não dizer da poesia portuguesa. Beleza formal, cada palavra no seu justíssimo lugar, um ritmo que condiz com o contexto. O poema é bem conhecido e eu sabia-o de cor, mas, como acontece com muitos outros, ultimamente tenho dificuldade em lembrar algumas palavras. Ei-lo:

Fernando Pessoa
O MENINO DA SUA MÃE


No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

 A palavra "apodrece" no penúltimo verso produz um choque. Já o "arrefece", no 5.º verso é muito mais suave, e a contradição entre a força das duas palavras contribui para o choque. Este pode ser antecipado pelo "ele é que já não serve", que é um modo pouco vulgar de referir um morto, mas é o facto, aliás natural, de apodrecer, logo seguido do nome carinhoso que a mãe lhe dera, que dá o tom trágico ao poema.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Comme un p’tit coquelicot

Hoje, novamente num registo diferente, veio-me à ideia uma cançoneta francesa de Mouloudji que fez furor nos anos 60 e de que eu gosto muito.Uma melodia suave, um ritmo convidativo. Eis a letra de Comme un p’tit coquelicot:

Comme un p’tit coquelicot - Mouloudji

Le myosotis, et puis la rose,
 ce sont de fleurs qui disent quequ'chose,
 mais pour aimer les coquelicots,
 et n'aimer que ça il faut être idiot » …

T'as peut-être raison, seulement voilà:
Quand je t'aurai dit, tu comprendras
La première fois que je l'ai vue
Elle dormait, à moitié nue
Dans la lumière de l'été
Au beau milieu d'un champ de blé
Et sous le corsage blanc
Là où battait son coeur
Le soleil, gentiment
Faisait vivre une fleur
Comme un petit coquelicot, mon âme
Comme un petit coquelicot

C'est très curieux comme tes yeux brillent
En te rappelant la jolie fille
Ils brillent si fort que c'est un peu trop
Pour expliquer... les coquelicots!

T'as p't-être raison, seulement voilà
Quand je l'ai prise dans mes bras,
Elle m'a donné son beau sourire
Et puis après sans rien nous dire
Dans la lumière de l'été
On s'est aimé, on s'est aimé
Et j’ai tant appuyé
Mes lèvres sur son coeur
Qu'à la place du baiser
Y'avait comme une fleur
Comme un petit coquelicot, mon âme
Comme un petit coquelicot

Ça n'est rien d'autre qu'une aventure
Ta petite histoire, et je te jure
Qu'elle ne mérite pas un sanglot
Ni cette passion... des coquelicots!

Attends la fin, tu comprendras
Un autre l'aimait qu'elle n'aimait pas
Et le lendemain, quand je l'ai revue
Elle dormait à moitié nue
Dans la lumière de l'été
Au beau milieu du champ de blé
Mais, sur le corsage blanc
Juste à la place du coeur
Y'avait trois gouttes de sang
Qui faisaient comme une fleur
Comme un petit coquelicot, mon âme
Comme un petit coquelicot
Comme tout petit coquelicot

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Se - Rudyard Kipling

Deixemo-nos, por agora de piadas. Vou tratar de um poesia muita séria e que tem sido considerada fundamental, não só no domínio poético, mas também no filosófico e até ético. Trata-se do célebre Se, de Rudyard Kipling. Cheguei a ele através das minhas irmãs que andavam entusiasmadas com o poema. E transmitiram-me o entusiasmo. De algum modo, procurei aproximar.me do ideal que o poema expressa. Começo por apresentar o original inglês. Mas o que soube de cor foi. como é evidente, a tradução portuguesa de Féliz Bermudes. Há outras traduções, mas não só esta é, a meu ver, a mais conseguida, como é a mais conhecida.

If - Rudyard Kipling

If you can keep your head when all about you
  Are losing theirs and blaming it on you,
If you can trust yourself when all men doubt you,
  But make allowance for their doubting too;
If you can wait and not be tired by waiting,
  Or being lied about, don’t deal in lies,
Or being hated, don’t give way to hating,
  And yet don’t look too good, nor talk too wise:

If you can dream—and not make dreams your master;
  If you can think—and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
  And treat those two impostors just the same;
If you can bear to hear the truth you've spoken
  Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
  And stoop and build ’em up with worn-out tools:

If you can make one heap of all your winnings
  And risk it on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
  And never breathe a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
  To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
  Except the Will which says to them: “Hold on!”

If you can talk with crowds and keep your virtue,
  Or walk with Kings—nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you,
  If all men count with you, but none too much;
If you can fill the unforgiving minute
  With sixty seconds’ worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that’s in it,
  And—which is more—you’ll be a Man, my son!





A tradução de Félix Bermudes é a seguinte:




Se - Rudyard Kipling, Tradução de Félix Bermudes

Se podes conservar o teu bom senso e a calma
Num mundo a delirar p’ra quem o louco és tu,
Se podes crer em ti com toda a força d’alma
Quando ninguém te crê, se vais faminto e nu,
Trilhando sem revolta um rumo solitário,
Se à torva intolerância, se à negra incompreensão
Tu podes responder subindo o teu calvário
Com lágrimas de amor e bênçãos de perdão;

Se podes dizer bem de quem te calunia,
Se dás ternura em troca aos que te dão rancor,
Mas sem a afectação dum santo que oficia
Nem pretensões de sábio a dar lições de amor;
Se podes esperar sem fatigar a esperança,
Sonhar, mas conservar--te acima do teu sonho,
Fazer do pensamento um arco de aliança
Entre o clarão do inferno e a luz do céu risonho;

Se podes encarar com indiferença igual
O triunfo e a derrota, eternos impostores,
Se podes ver o bem oculto em todo o mal
E resignar sorrindo o amor dos teus amores;
Se podes resistir à raiva e à vergonha
De ver envenenar as frazes que disseste,
E que um velhaco emprega eivadas de peçonha
Com falsas intenções que tu jamais lhe deste;

Se podes ver por terra as obras que fizeste
Vaiadas de malsins, desorientando o povo
E sem dizeres palavra e sem um termo agreste
Voltares ao princípio, a construir de novo;
Se podes obrigar o coração e os músculos
A renovar um esforço há muito vacilante
Quando no teu corpo afogado em crepúsculos
Só existe a vontade a comandar “Avante!”;

Se vivendo entre o povo és virtuoso e nobre
Se vivendo entre os reis conservas a humildade
Se inimigo ou amigo, o poderoso e o pobre
São iguais para ti à luz da eternidade;
Se quem conta contigo encontra mais que a conta,
Se podes empregar os sessenta segundos
Dum minuto que passa em obra de tal monta
Que o minuto se espraia em séculos fecundos;

Então, ó ser sublime, o mundo inteiro é teu,
Já dominaste os reis, os tempos, os espaços,
Mas inda para além um novo sol rompeu
Abrindo o infinito ao rumo dos teus passos.
Pairando numa esfera acima deste plano,
Sem recear jamais que os erros te retomem,
Quando já nada houver em ti que seja humano,
Alegra--te meu filho, então serás um homem.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Para acabar com o Kurfürst Friedrich

Descobri a tradução, suponho que feita por mim, pelo menos manuscrita com a minha letra, da canção que cantávamos no Curso de Férias da Badische em 1962. Não adianta muito sobre tudo o que já foi dito a propósito desta canção, mas para mim ainda é um documento.

Kurfürst Friedrich – Tradução de 1962

Raivoso revolvia-se um dia na cama
o príncipe (eleitor) Federico do Palatinado;
contra toda a etiqueta, berrou ele com toda a força:
"Como entrei eu ontem na cama?
estive, parece, outra vez borracho!"

 “Ora, um pouco carregado e de esguelha,”
sorriu ironicamente o criado de quarto mouro,
“Mesmo o bispo da benção de Mogúncia
veio junto de mim emborrachado;
foi pois então uma bela festa:
todos outra vez borrachos!”

“Então tu achas que é caso para rir?
alma de escravo, ri pois!
de futuro farei eu de outro modo,
Hassan, ouve o meu juramento:
a última vez, pela fome e pela peste,
seja que eu tivesse estado borracho!

Quero levar uma vida cristã,
inteiramente me dedicarei à contemplação;
e para controlar os meus actos,
registarei num diário,
e espero que vocês não leiam
que eu tenha estado outra vez borracho!”

Quando o príncipe estava a morrer
fez o seu testamento,
e os seus herdeiros encontraram
também um livro em pergaminho.
Dentro estava em todas as páginas:
“Sede razoáveis, querida gente,
Aqui atesto eu:
Hoje estive outra vez borracho!

Daqui podem agora todos ver,
quanto um bom propósito é útil,
e até onde também resiste,
quando o copo cheio reluz?
Brindo por todos os presentes! Probatum est:
Hoje estive outra vez borracho!”

Costa da Caparica - incompleta

Veio--e à ideia uma muito velha cançoneta sobre a Costa da Caparica. Como a decorei, embora muito incompleta?. Onde a ouvi? Seria, como muitas das cançonetas da minha juventude, uma canção de uma revista? Seria cantada por alguma empregada doméstica? Talvez, mas como tem a sua piada, apresento o que sei:

Na Costa da Caparica

Sete horas da manhã, levanta-se a mamã para aquecer o café
E o papá, o dorminhoco, ressonava ainda há pouco, sonhando já estar a pé,
E o Zequinha lá na cama pensava naquela praia tão rica
E em resumo arquitectava como o dia se passava na Costa da Caparica.

Eram oito horas, foram p’ra paragem,
De balde na mão, a mãe com o cão e o pai com a bagagem…


Tem piada, não tem?

segunda-feira, 21 de maio de 2018

4R Quarta República

Que se passa com o blog 4R, que já reuniu peças fundamentais para compreender o descalabro da nossa democracia. Nos últimos tempo só lá escreve Pinho Cardão, e mesmo este sem grande frequência. É ou era um blog de referência, mas agora vê-se definhando por falta de colaboração.
JM Ferreira de Almeida, Margarida Corrêa de Aguiar, Massano Cardoso, Miguel Frasquilho, Suzana Toscano,Tavares Moreira, David Justino: de que estão à espera? Já não se passa algo na política que suscite o vosso comentário?
Ou será que os cargos que ocupam lhes roubam tempo para escrever 4 linhas no 4R?

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Fome de tempo

Seja-me permitido agora publicar um poema da minha autoria. Sim, tenho guardados numa pasta de recordações numerosos papéis, poesias, desenhos, revistas e imprensa estudantil, recortes de revistas e até fotografias. E em jovem tentei a poesia e escrevinhei umas coisas. Mas não era positivamente a minha vocação. E foi assim que esqueci os devaneios poéticos e me dediquei ao estudo da Engenharia Química que me permitiu pagar a côdea que me tem sustentado todos estes anos.

Apesar deste arrazoado, cá vai o meu poema de juventude, ilustrado por um desenho meu da mesma época:

Fome de tempo
Esta fome de tempo, que em vão tento
cobrir de escuridão e esquecimento,
é uma fome antiga mais que o mundo,
mas que nem séculos podem saciar.

Com que sofreguidão vou devorando
os segundos, em busca do instante
definitivo, que fora do tempo
existe, numa nova dimensão!

Mas a barreira de silêncio e medo
que entre mim e o tempo se levanta
é mais forte que a própria eternidade,

Porque esta fome não é do tempo morto,
em si contínuo, em si quotidiano,
mas do prolongamento do presente.

Júlio Freire de Andrade


sábado, 12 de maio de 2018

O noivado do Sepúlcro . Soares de Passos

"Que saudades que eu já tinha da minha alegre casinha, tão modesta como eu". Não, não me vou referir à canção da Milu (assassinada por um grupo de rock qualquer).  Mas a introdução refere-se ao meu regresso a casa depois de ter tido alta dos 10 dias em que tive "a enxerga do hospital por leito". Finalmente liberto do hospital, volto a mudar completamente de estilo. Escolhi um longo poema de Soares de Passos, "O Noivado do Sepulcro", não pela qualidade da poesia, mas porque tenho gravada na minha memória dos tempos de juventude uma paródia muito cómica a este poema. Foi desta paródia que tirei a frase acima. Esta mensagem vale pela paródia, mas, para se compreender o seu significado, é necessário visitar o poema original de Soares de Passos, de que apenas tenho conservados nas minhas memórias as primeiras quadras, mas que é fácil encontrar na net. O poema é muito longo e o tema não é sequer agradável; a morte pode ser objecto poético, mas o tratamento que Soares de Passos lhe dá parece-me lamentável. Mas sigamos para o poema, seguido da paródia. Infelizmente a memória falha-me na parte final. As reticências (...) substituem a falha.

O Noivado do Sepulcro - Soares de Passos

Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?

"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?

"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!

- "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda,
Responde um eco suspirando além...
- "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?

"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
- "Oh vejo sim... recordação fatal!
- "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.

Soares de Passos, in 'Antologia Poética'


Paródia a O Noivado do Sepulcro (incompleta)


Vai alto o preço da vitela assada
Já meia dose cem vinténs custou;
Hoje é o dobro porque a tal cambada
O preço à carne nem a pau baixou.

Na escura tasca doce paz reinava
Mas eis que a porta a dura mão cedeu;
E o cozinheiro que dormindo estava,
D'entre as panelas a cabeça ergueu.

Ergueu-se, então p’ra que o freguez não fuja,
Esfrega os olhos, assoa-se e ri;
O caldo geme na panela suja
E o gato mia p’ra fazer chi-chi..

Entra um freguez e uma formosa dama
E eis que o par abancou enfim...
E à luz do gás de tão sinistra chama,
Pegou na lista e falou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tasca não cessei d'amar,
"Toma esta lista, minha massa é tua,
"Escolhe o petisco que te apraz cear."

“Eu, que há três dias, adorado Antero,
"A enxerga tenhpo do hospital por leito,
"Por ter larica e por ser débil quero
"Vitela assada que faz bem ao peito."

"Vitela! engano que na tasca finda,
"Vitela assada! P’ra que presta aquilo:
"Quem da vitela se lembrará ainda
"Depois que está a seis vinténs por quilo?

"A carne é cara, minha doce amada
"Escolhe peixe, vê lá isso então...”
"Rapaz, não ouves,” diz com voz magoada
"Dois pratos já de bacalhau com grão!”



Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma mesa de tasca vazia,


Porém mais tarde, quando foi volvido
Da tasca escura o gelado pó,
Foram achados, um ao outro unidos,
ambos chupando numa espinha só.

Autor desconhecido. Citado de memória.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Kurfürst Friedrich von der Pfalz - August Schneider

Um episódio de doença obrigou-me a interromper o ritmo de publicações neste blog. Agora, conseguida uma ligação à internet mesmo no hospital, volto a convivência dos leitores. Mudando mais uma vez de estilo, decidi rever uma canção que fez parte de umas folhas distribuídas aos estudantes de um curso de férias promovido pela BASF em Ludwigshafen-am-Rhein em 1962. Metade dos estudantes eram estrangeiros e os restantes alemães. Serviu para praticar o meu então pobre alemão e tive mesmo dificuldade em seguir as palestras, mas não só foi muito útil tanto profissionalmente como para prática da língua, como ainda me diverti muito. Além das palestras e das visitas de estudo tivemos um largo programa de diversões e, entre outras coisas, cantávamos esta e outras canções. Foi com surpresa que, por ter as velhas folhas de letras de canções alemãs guardadas em casa enquanto eu me encontro internado num hospital, procurei e achei a canção "Kurfürst Friedrich" abundantemente citada na net. Eis a letra original, a referência a  uma interpretação e uma tentativa de tradução:


Kurfürst Friedrich -  August Schneider


1. Wütend wälzt sich einst im Bette
Kurfürst Friedrich von der Pfalz;
gegen alle Etikette
brüllte er aus vollem Hals:
|:Wie kam gestern ich ins Nest?
Bin scheint's wieder voll gewest!:|

2. „Na, ein wenig schief geladen",
grinste d'rauf der Kammermohr,
„selbst von Mainz des Bischofs Gnaden
kamen mir benebelt vor —
|:'s war halt doch ein schönes Fest:
Alles wieder voll gewest!":|

3. „So? Du findest das zum Lachen?
Sklavenseele, lache nur!
Künftig, werd' ich's anders machen,
Hassan, höre meinen Schwur:
|: 's letzte Mal bei Tod und Pest,
war es, daß ich voll gewest.":| 


4. „Will ein christlich Leben führen,
ganz mich der Beschauung weih'n,
um mein Tun zu kontrollieren,
trag' ich's in ein Tagbuch ein
|:und ich hoff', daß ihr nicht les't,
daß ich wieder voll gewest.":|

5. Als der Kurfürst kam zum Sterben,
machte er sein Testament,
und es fanden seine Erben
auch ein Buch in Pergament.
Drinnen stand auf jeder Seit':
|:,,Seid vernünftig, liebe Leut',
dieses geb' ich zu Attest:
Heute wieder voll gewest!":|

6. Hieraus mag nun jeder sehen,
was ein guter Vorsatz nützt,
und wozu auch widerstehen,
wenn der volle Becher blitzt?
|:Drum stoßt an! Probatum est:
Heute wieder voll gewest!":|
  


Tentativa de tradução para Português (com base no tradutor  Google) com correcções pelo sentido.


1. Uma vez, irritado às voltas na cama,
O Eleitor Friedrich do Palatinado;
contra toda a etiqueta 

rugia em voz alta:
|: Como cheguei ao ninho ontem?
Parece que eu estava outra vez borracho! :|

2. "Bem, um pouco inclinado para o lado",
sorriu ironicamente o camareiro mouro,
"Mesmo o bispo Gnaden de Mogúncia

Me pareceu um pouco tonto -
|: Foi apenas uma bela festa:
Todos outra vez completamente borrachos! ": |

3. "Então? Tu achas isso engraçado?
Alma escrava, pois ri-te então
!
No futuro, eu farei diferente,
Hassan, ouve o meu juramento
|: foi a última vez pela morte e pela peste,
Que eu estarei borracho. ": |

4. "Levarei uma vida cristã,
consagrar-me-ei completamente à contemplação
para controlar minhas acções,
Vou escrever tudo num diário
|: e espero que tu não leias,
que eu esteja outra vez borracho. ":


 5. Quando o eleitor veio a morrer,
 ele fez o seu testamento,
 e os seus herdeiros acharam
também um livro em pergaminho. 
Dentro estava em cada página:
 |: "Seja sensato, querido povo
Eu escrevo para atestar: 
Hoje outra vez completamente borracho! ": |

6. Pelo exposto, todos podem ver
como é útil um bom propósito, 
e como se consegue resistir  
quando uma taça cheia brilha?
|: Portanto! Probatum est: 
Hoje outra vez completamente borracho! "

de Jörg Julius Reisek
O Conde Palatino Friedrich IV., Gen. O "sincero" (1574-1610), foi amplamente conhecido como um eleitor em busca de prazeres. Festivais, caça, jogos e embriaguez dominaram sua vida e trouxeram uma morte prematura. Através da expansão do Castelo de Heidelberg e da fundação de Mannheim, ele arruinou completamente as finanças de seu país. Ele foi o pai do "Rei de Inverno" Friedrich
As anotações do diário do eleito tornaram-se uma triste celebridade. "Eu provavelmente estou borracho novamente", afirmou em diferentes variantes para a posteridade. Isso inspirou August Schneider a criar a música "Elector Frederick", que foi musicada por Karl Hering em 1887.


domingo, 29 de abril de 2018

Der Lindenbaum (A tília) - W. Müller

Afinal não resisti a dar um lugar ao Lied de Schubert Der Lindenbaum (A Tília). O poema, da autoria de W. Müller, é lindíssimo e o ambiente poético vai mais além, na minha opinião, do que o de A Truta. A música de Schubert também é maravilhosa. Não encontrei uma tradução da letra que me satisfizesse e tive de introduzir algumas alterações numa tradução brasileira. Já soube este poema de cor, mas agora não sou capaz de o recitar inteiramente sem consultar uma cábula.

Der Lindenbaum – W. Müller

Am Brunnen vor dem Tore,
da steht ein Lindenbaum;
ich träumt’ in seinem Schatten
so manchen süssen Traum.

Ich schnitt in seine Rinde
so manches liebe Wort;
es zog in Freud’ und Leide
zu ihm mich immer fort.

Ich musst’ auch heute wandern
vorbei in tiefer Nacht,
da hab’ ich noch im Dunkel
die Augen zugemacht.

Und seine Zweige rauschten,
als riefen sie mir zu:
“Komm her zu mir, Geselle,
hier find’st du deine Ruh’!”

Die kalten Winde bliesen
mir grad’ ins Angesicht,
der Hut flog mir vom Kopfe,
ich wendete mich nicht.

Nun bin ich manche Stunde
entfernt von jenem Ort,
und immer hör’ ich’s rauschen:
“Du fändest Ruhe dort!”




Tradução:

A Tília

Junto à fonte diante do portão
Ergue-se uma tília;
Quantos sonhos doces
Sonhei à sua sombra.

No seu tronco gravei
Tantas palavras de amor;
Na dor e na alegria
Para ela sempre me atraiu.

Hoje tive de passar por ela
No meio da noite profunda,
E mesmo na escuridão
Tive que fechar os olhos.

E os seus galhos sussurravam,
Como se me chamassem:
“Chega-te a mim, companheiro,
Aqui encontrarás a tua paz!”

Os ventos frios sopravam
Com força na minha face,
O chapéu voou-me da cabeça,
Mas não me voltei para trás.

Agora estou a muitas horas
De distância daquele lugar
Mas continuo a ouvir o sussurro
“Aqui encontrarás a paz!”

sábado, 28 de abril de 2018

Die Forelle (A truta) - Christian Friedrich Daniel Schubart

Como letra de uma canção chegou a vez de Die Forelle (A Truta). Confesso que hesitei entre A Truta e Der Lindenbaum (A Tília), mas por fim preferi a primeira opção. O nome do autor do poema é-me desconhecido e o que me interessa é mais o Lied de Schubert. A magnífica voz de Dieter Fischer-Dieskau dá um particular relevo ao Lied. Apresento a letra completa do poema e uma tradução para português.

Die Forelle
Franz Schubert

By Christian Fr. D. Schubart (1739-1791)

In einem Bächlein helle,
Da schoß in froher Eil
Die launische Forelle
Vorüber wie ein Pfeil.

Ich stand an dem Gestade
Und sah in süßer Ruh
Des muntern Fischleins Bade
Im klaren Bächlein zu.

Ein Fischer mit der Rute
Wohl an dem Ufer stand,
Und sah's mit kaltem Blute,
Wie sich das Fischlein wand.

So lang dem Wasser Helle,
So dacht ich, nicht gebricht,
So fängt er die Forelle
Mit seiner Angel nicht.

Doch endlich ward dem Diebe
Die Zeit zu lang. Er macht
Das Bächlein tückisch trübe,
Und eh ich es gedacht,

So zuckte seine Rute,
Das Fischlein zappelt dran,
Und ich mit regem Blute
Sah die Betrogene an.

Tradução:


Num límpido riacho
A truta caprichosa
Precipitva-se em alegre pressa
Como uma seta.

Eu estava sobre a margem
E via em doce tranquilidade
O alegre pequeno peixe
Banhar-se na clara corrente do riacho.

Um pescador com a sua cana
Estava sobre a margem
E via com sangue frio
Como o peixe se remexia.

Enquanto a água permanecer
Clara, pensava eu,
Ele não apanhará a truta
Com a sua cana

Mas, por fim, o ladrão,
Cansado de esperar,
Perfidamente o riacho turvou,
E antes que eu me desse conta,

A sua cana estremeceu,
E nela o peixe estrebuchou,
E eu com o sangue a ferver
Vi a pobre morrer.

Esta tradução à letra não tem, evidentemente, qualquer valor poético e é apresentada apenas para  compreensão do texto.

Mas, muito mais do que o Lied, por muito bem que seja interpretado, vale, para mim, o quinteto com variações sobre os temas da canção. Embora saia do âmbito deste blog, não resisto a deixar uma ligação para uma interpretação deste quinteto, uma das minhas músicas de Schubert preferidas.


quarta-feira, 25 de abril de 2018

Despertar - João Pedro de Andrade

Insisto uma vez mais em escolher uma poesia do meu pai, já que a que ontem aqui deixei era uma pálida amostra da sua obra poética da juventude. Agora, do único livro de poesia que publicou, já ontem aqui citado, Castelos, de 1923, escolhi um dos sonetos aí contidos. Respeitei a ortografia original.

               Despertar

Somos da terra, amor, somos da terra...
P'ra que criar um vôo imaginário
P'lo ceu em fora, se o horizonte vário
Ao nosso olhar cativo se descerra?

Se a vontade divina nos desterra
Neste torrão longinquo e solitário,
P'ra que buscar um mundo extraordinário
Cuja visão remota nos aterra?

O mundo é vasto, o amor mais vasto ainda.
Á nossa volta, a Natureza é linda.
De braço dado pela estrada fora,

Sigamos, pois, serenos e contentes,
Olhando a braza rubra dos poentes
Ou o despontar fantástico da aurora.


terça-feira, 24 de abril de 2018

Castelo de Santiago

Passando a uma intenção e a um estilo completamente diferentes, tomo a liberdade de transcrever aqui um curto poema do meu pai, João Pedro de Andrade, poema que apenas posso citar de cor, com a possibilidade de erro inerente. Nem sei se o que tiro da memória está completo, mas este poema sempre significou para mim uma grata recordação. O meu pai tornou-se mais conhecido como dramaturgo, escritor, ensaísta e crítico literário e de teatro, mas na juventude dedicou-se à poesia. Ainda muito jovem, publicou várias poesias no jornal da sua terra, Ponte de Sor, os Ecos do Sor. Mais tarde, em 1923, chegou a publicar um livro de versos, Castelos, em edição do autor. Mas o poema que me marcou, apesar de pelo título se poder integrar nesse livro, não consta dele, nem sei onde ou sequer que se foi publicado, só sei que o conheço de cor por o ter ouvido ao meu pai.

Castelo de Santiago

Castelo de Santiago,
Castelo altivo e tristonho,
De aspecto solene e vago
És a ruína dum sonho.

Talvez um dia em teu seio
Eu vá repousar com calma,
Quando findar este anseio
Que trago dentro da alma.

Castelo de Santiago


Esta última quadra pode parecer estranha a quem não souber que o interior do Castelo de Santiago contém o cemitério da cidade.

domingo, 22 de abril de 2018

Green - canção / poema VI de Sagesse (Le ciel est par-dessus le toit)

O poema Green de Verlaine foi posto em música por diversos compositores. Por isso tanto se pode justificar a sua inclusão neste blog na categoria de poesia como na de letra de canção. Existem, pelo menos, versões cantadas de Green dos compositores Claude Debussy, Gabriel Fauré e Reynaldo Hahn. Mais recentemente, Léo Ferré apresentou também uma versão cantada.

Uma muito interessante análise comparativa das diversas versões musicais do poema é apresentada aqui.


A versão de Léo Ferré pode ser vista e ouvida aqui.

Sobre as palavras com que Léo Ferré introduz a canção, quando afirma que Verlaine escreveu esta poesia "à intenção de Rimbaud", há que esclarecer que Ferré se confundiu; o poema é "uma oferta de amor, uma homenagem respeituosa destinada a fazer as pazes com Mathilde, uma declaração de amor cheia de desejo e um rogo a que ela não o rejeite e aceite a reconciliação", conforme descrito na análise comparativa anterior.

E já que falamos de Verlaine, será apropriado apresentar outro dos seus poemas, também dos meus preferidos:

     VI de Sagesse

Le ciel est, par-dessus le toit
           Si bleu, si calme!
Un arbre, par dessus le toit,
           Berce sa palme.

La cloche, dans le ciel qu'on voit,
           Doucement tinte.
Un oiseau sur l'arbre qu'ou voit
           Chante sa plainte.

Mon Dieu, mon Dieu, la vie est là
            Simple et tranquille.
Cette paisible rumeur-là
            Vien de la ville.

Qu'as-tu fait, ô toi que voilà
            Pleurant sans cesse,
Dis, qu'as-tu fait, toi que voilà
            De ta jeunesse?

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Green - Paul Verlaine

Não sei bem quando nem como me apaixonei pela poesia de Verlaine. Suponho que terá sido já depois dos meus 20 anos. Devo ter visto algures um dos seus poemas e pouco depois decidi comprar um pequeno volume da colecção Le Livre de Poche que continha os Poèmes saturniens seguidos das Fêtes galantes. Mais tarde comprei, da mesma colecção, o volume que contém La bonne chanson, os Romances sans paroles e a colectânea Sagesse.




São muitos os poemas de Verlaine que estão entre as minhas preferências poéticas. Sei muitos de cor. A escolha do primeiro para apresentar aqui não foi fácil. Mas decidi que o meu mais preferido é este:


                           Green
 

Voici des fruits, des fleurs, des feuilles et des branches
Et puis voici mon coeur qui ne bat que pour vous.
Ne le déchirez pas avec vos deux mains blanches
Et qu'à vos yeux si beaux l'humble présent soit doux.


J'arrive tout couvert encore de rosée
Que le vent du matin vient glacer à mon front.
Souffrez que ma fatigue à vos pieds reposée
Rêve des chers instants qui la délasseront.


Sur votre jeune sein laissez rouler ma tête
Toute sonore encore de vos derniers baisers;
Laissez-la s'apaiser de la bonne tempête,
Et que je dorme un peu puisque vous reposez.




quarta-feira, 18 de abril de 2018

Liberdade - Fernando Pessoa

Referi o poema Liberdade, de Fernando Pessoa, a propósito do poema homónimo de Armindo Rodrigues. Apesar do de Pessoa ser bastante conhecido e fácil de encontrar, acho que merece ser incluído no meu conjunto de poemas.

Liberdade – Fernando Pessoa

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa…

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor de tudo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…

Como disse, não me parece que faça algum sentido comparar este poema com o de Armindo Rodrigues. As liberdades a que se referem são muito diferentes: Armindo Rodrigues refere-se à liberdade frente à opressão.Tem uma carga ideológica marcada e um estilo e um ritmo condicentes; por outro lado, Fernando Pessoa refere-se à liberdade em relação às convenções, como se diria agora contra o politicamente correcto. É mais um comentário jocoso, talvez nem sequer muito sincero (Fernando Pessoa certamente tinha biblioteca e apreciava livros, apesar de os apelidar de "papéis pintados com tinta". Nada a ver, portanto, com o grito de liberdade de Armindo Rodrigues.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Tout va très bien, Madame la Marquise!

Ouvi uma vez na rádio, na pequena telefonia dos meus pais, aparelho Philips modesto de baquelite esverdeado com uns frisos metálicos que me encantavam, telefonia que por vezes começava a fazer ruídos estranhos que o meu pai remediava com umas pancadas dadas com precisão científica no aparelho, dizia eu, ouvi uma vez na rádio um canção com música bem ritmada cantada por um coral afinado. O estribilho era "Tout va très bien, Madame la Marquise!", mas nunca consegui compreender o resto da letra, até porque na época ainda não tinha começado a aprender francês. Nos anos seguintes ainda ouvi a mesma canção algumas vezes, mas depois passou de moda, como sempre acontece. Qual é o meu espanto quando, navegando na net, vejo uma referência a esta canção e logo a seguir descobri um vídeo, a letra completa e a história da sua génese. A letra é extremamente cómica dentro do género de humor negro. Eis a letra:

Tout va très bien, Madame la Marquise

Allô, allô, James, quelles nouvelles
Absente depuis quinze jours,
Au bout du fil je vous appelle
Que trouverai-je à mon retour?
Tout va très bien, madame la Marquise
Tout va très bien, tout va très bien
Pourtant il faut, il faut que l'on vous dise
On déplore un tout petit rien
Un incident, une bêtise,
La mort de votre jument grise
Mais à part ça, Madame la Marquise
Tout va très bien, tout va très bien!

Allô, allô, Martin, quelles nouvelles
Ma jument grise, morte aujourd'hui?
Expliquez moi, cocher fidèle,
Comment cela s'est-il produit?

Cela n'est rien, madame la Marquise
Cela n'est rien, tout va très bien,
Pourtant il faut, il faut que l'on vous dise
On déplore un tout petit rien.
Elle a périt dans l'incendie
Qui détruisit vos écuries
Mais à part ça, madame la Marquise
Tout va très bien, tout va très bien!

Allô, allô, Pascal, quelles nouvelles
Mes écuries ont donc brûlé?
Expliquez moi, mon chef modèle
Comment cela s'est- il passé.
Cela n'est rien, madame la Marquise,
Cela n'est rien, tout va très bien!
Pourtant il faut, il faut que l'on vous dise
On déplore un tout petit rien
Si l'écurie brûla, madame,
C'est qu'le château était en flamme,
Mais à part ça, madame la Marquise
Tout va très bien, tout va très bien!

Allô, allô, Lucas, quelles nouvelles
Notre château est donc détruit?
Expliquez moi car je chancelle!
Comment cela s'est- il produit?

Eh! bien voilà, madame la Marquise
Apprenant qu'il était ruiné
A peine fut-il rev'nu de sa surprise
Que Monsieur l'Marquis s'est suicidé
Et c'est en ramassant la pelle
Qu'il renversa toutes les chandelles
Mettant le feu à tout l'château
Qui s'consuma de bas en haut
Le vent souflant sur l'incendie,
Le propageant sur l'écurie
Et c'est ainsi qu'en un moment
On vit périr votre jument…

Mais à part ça, madame la Marquise
Tout va très bien, tout va très bien!


O vídeo está disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=T5WdpSPeQUE

e há mais explicações em:
http://www.dutempsdescerisesauxfeuillesmortes.net/paroles/tout_va_tres_bien.htm

Fiquei a saber que a canção foi criada em 1935 por Paul Misakri, autor da letra e da música.

domingo, 15 de abril de 2018

Pastelaria de Mário Cesariny

São muitas as poesias de Mário Cesariny que gostaria de incluir nesta série. Algumas sei-as de cor. Muitas são minhas conhecidas há muitos anos. Cesariny é um dos poetas portugueses meus preferidos. Começo pela Pastelaria, um dos seus poemas mais conhecidos e um dos que possuem, para mim, especial significado, que é afinal o que importa:

PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
 nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
— ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o, que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito, alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

sábado, 14 de abril de 2018

Mote e glosas tradicionais e humorísticos

Ouvi, há muitos anos, o meu avô recitar uma poesia cheia de humor pelas contradições de situações cómicas. Tratava-se de uma poesia tradicional sob a forma de mote e glosas. Fixei o poema de cor, mas com o tempo acabei esquecendo a glosa final. Não consegui nem encontrar qualquer referência que me ajudasse nem reconstituir de memória o que falta. Mesmo assim, pela sua graça, acho útil incluir nesta série de poesias. Ei-la:

Nas trevas dum claro dia
(mote e glosas)

Mote:
Por uma ladeira abaixo
Fui trepando devagar,
Caí por terra suspenso,
Sendo enterrado no ar.


Glosas:
1)
Nas trevas dum claro dia
Eu, parado, caminhava
E calado discursava
Sobre o que um mudo dizia.

Ao frio do Sol eu tremia
E buscando o ardor dum riacho
Entre os gelos me encaixo
P’ra buscar um suadouro
E subi, qual um besoiro,
Por uma ladeira abaixo.

2)
Nisto descubro encoberta
A mais hedionda beleza,
Opulenta de pobreza
E a panhonha mais esperta.

Lutando em dúvida certa
Entrei p’la terra a voar
E de pé me fui prostrar
Ante essa harpia divina
E do monte pr’á campina
Fui trepando devagar.
3)
Eu de sede tinha um rio
A crescer fora da boca
E de cheia senti oca
A cabeça a arder em frio

Duma ovelha ouvi o pio
E o balar dum pisco imenso
E onde o claro era mais denso
Fechando os olhos, vi tudo,
E ao ver a Páscoa no Entrudo
Caí por terra suspenso.

4)


Sendo enterrado no ar.

Que poderá causar um enterro no ar? Fica o mistério. Se algum dos meus numerosos (!) leitores tiver alguma pista, agradeço comunicação.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Mes jeunes anées

Nessa minha primeira viagem ao estrangeiro, o modo de viajar era muito diferente do que se usa hoje em dia. Claro que já havia, desde há muito, voos directos Lisboa-Paris, mas destinavam-se apenas a uma classe privilegiada que podia pagar os custos elevados que eram praticados. Para membros da pequena burguesia, como nós, havia o Sud-Express, que demorava 2 dias a chegar a Paris, implicava mudança de comboio em Irun por causa da divergência das bitolas, que para mim inexplicavelmente, ainda perdura. Quem podia pagar as chamadas couchetes ainda podia passar a noite deitado, mas a maioria dos viajantes dormiam sentados no seu lugar. Mas, para os jovens como nós, havia ainda uma solução mais económica: viajar à boleia. Foi o que a minha irmã e eu escolhemos, mas por precaução só a partir de Madrid. O pouco dinheiro que tínhamos ganho a dar explicações a alunos de liceu dificilmente dava para mais. Assim, em Madrid pusemo-nos à estrada na esperança de que alguém nos levasse em direcção à fronteira francesa. Após umas horas de tentativas, tivemos de desistir e voltámos ao comboio. Mas a partir de Bayonne as coisas correram melhor e o resto da viagem foi feita com base no chamado auto-stop e pernoitando em albergues da juventude, para o que nos tínhamos munido do respectivo cartão de membro.

A estadia em França, após uns dias, poucos, de turismo em Paris, começou com trabalho comunitário num campo da organização Jeunesse et Reconstruction, ligada à obra do Abbé Pierre. Depois rumámos aos Alpes, onde plantei milhares de pinheiros como protecção contra as avalanches. Por fim fomos fazer vindimas perto de Bordéus. Em todas estas actividades tínhamos direito a alojamento, a refeições e a um pequeno argent de poche. Foi no último campo de vindimas, num grupo internacional de jovens, que participámos em noites de convívio que me deixaram belas recordações. E foi aí que, numa dessas noites, ouvi dois membros do nosso grupo cantar uma canção que nunca mais me esqueceu. Só muito recentemente, graças à internet, pude identificar a canção como sendo do reportório de Charles Trenet e pude recuperar a letra integral:

MES JEUNES ANNÉES - Charles Trenet

Mes jeunes années
Courent dans la montagne,
Courent dans les sentiers
Pleins d'oiseaux et de fleurs
Et les Pyrénées
Chantent au vent d'Espagne,
Chantent la mélodie
Qui berça mon coeur,

Chantent les souvenirs,
Chantent ma tendre enfance,
Chantent tous les beaux jours
A jamais finis
Et, comme les bergers
Des montagnes de France,
Chantent le ciel léger
De mon beau pays

Parfois, loin des ruisseaux,
Loin des sources vagabondes,
Loin des fraîches chansons d'eau,
Loin des cascades qui grondent,
Je songe, et c'est là ma chanson,
Au temps béni des premières saisons

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Au bois d'mon coeur

Até agora só tenho apresentado poesias e não inaugurei ainda o ciclo das letras de canções. Para começar vou citar uma canção de Georges Brassens.

A primeira vez que saí de Portugal, numa viagem de recreio, mas também de trabalho, já que, por razões financeiras e de gosto, além de turismo participei, acompanhando a minha irmã, em campos de trabalho para estudantes, foi em 1957 e o nosso primeiro destino foi, como não podia deixar de ser, Paris. Foi aí que numa tarde fomos ao cinema assistir ao filme La Porte des Lilas e foi nesse filme que apareceu Georges Brassens, ainda completamente desconhecido em Portugal e de quem nunca tínhamos ouvido falar. Mas foi encantamento à primeira vista, uma paixão que ainda hoje dura. Acompanhado pela sua eterna guitarra, Georges Brassens cantou Au bois d'mon coeur, cuja letra apresento de seguida.



AU BOIS DE MON COEUR

Au bois d’Clamart y a des petit’s fleurs
Y a des petit’s fleurs
Y a des copains au, au bois d´mon coeur
Au, au bois d´mon coeur.

Au fond d’ma cour j’suis renommé
Pour avoir le coeur mal famé.

Au bois d´Vincennes y a des petit’s fleurs
Y a des petit’s fleurs
Y a des copains au, au bois d´mon coeur
Au, au bois d´mon coeur.

Quand y a plus d’vin dans mon tonneau
Ils n’ont pas peur de boir’ mon eau.

Au bois d´Meudon y a des petit’s fleurs
Y a des petit’s fleurs
Y a des copains au, au bois d´mon coeur
Au, au bois d´mon coeur.

Ils m’accompagn’nt à la mairie
Chaque fois que je me marie.

Au bois d´Saint-Cloud y a des petit’s fleurs
Y a des petit’s fleurs
Y a des copains au, au bois d´mon coeur
Au, au bois d´mon coeur.

Chaque fois qu’ je meurs fidèlement
Ils suivent mon enterrement.

Au bois d´Cllamart y a des petit’s fleurs
Y a des petit’s fleurs
Y a des copains au, au bois d´mon coeur
Au, au bois d´mon coeur.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

O Corvo - Livros

Para acabar com a série de considerações sobre O Corvo e as suas traduções, que já vai longa, reproduzo agora as capas dos dois livros que possuo sobre este poema.

O primeiro é um livrito da editora ulmeiro com o título "O corvo e outros poemas . Edgar Allan Poe - Tradução de FERNANDO PESSOA" (colecção Mínima n.º 2). Além da tradução referida, apresenta traduções por Fernando Pessoa dos poemas Annabel Lee e Ulalume, uma tradução à letra do Corvo e um ensaio intitulado A Filosofia da Composição, no qual Poe faz uma análise da génese de The Raven.





O outro livro, "O CORVO - Poema de Edgar Allan Poe - Ilustrações de Gustave Doré", edição de Manuel Caldas, apresenta o poema original em inglês, a tradução de Fernando Pessoa, uma tradução para o castelhano de Juan Antonio Pérez Bonalde, precedidas de curtas apresentações de Poe, Doré, Pessoa e Pérez Bonalde. Tem ainda uma resenha sobre os gravadores que trabalharam as gravuras de Doré. Estas últimas preenchem 25 páginas, cada uma precedida de uma estrofe ou alguns versos de uma estrofe retirados da tradução de Pessoa, do original inglês e da tradução de Pérez Bonalde.

 A capa é ilustrada com uma das gravuras de Doré.

terça-feira, 10 de abril de 2018

O Corvo - mais traduções

Pensando que haveria, decerto, outros tradutores do poema de Poe, fiz o que eu julgava ser uma breve busca. Fiquei espantado ao achar 51 traduções (http://www.elsonfroes.com.br/mpoe.htm), algumas em prosa, muitas em verso. Este sítio cita ainda duas traduções para francês, ambas em prosa. Apesar de os autores serem poetas de renome (Baudelaire e Mallarmé), nenhuma me pareceu ter grande qualidade. Das traduções para português, nem consegui ler mais do que um pequeno número e, devo dizê-lo, a maioria não me agradou. No entanto há duas que me perece terem a qualidade mínima para merecerem figurar nesta resenha. São ambas de brasileiros. Apresento-as de seguida, sem comentários.

O Corvo - tradução de Milton Amado

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
A ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
E, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
Tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
“É alguém,  fiquei a murmurar, que bate à porta, devagar;
Sim, é só isso e nada mais.”

Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro
E o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda
Algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
E nome aqui já não tem mais.

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
Arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia
E a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais.”

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
“Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
Mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
Que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
Assim de leve, em hora morta.” Escancarei então a porta:
Escuridão, e nada mais.

Sondei a noite erma e tranquila, olhei-a a fundo, a perquiri-la,
Sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
Só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: “Lenora!”
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: “Lenora!”
Depois, silêncio e nada mais.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,
Mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
“É na janela”, penso então. “Por que agitar-me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
O vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.
É o vento só e nada mais.”

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
É um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,
Adeja e pousa sobre o busto, uma escultura de Minerva,
Bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
Empoleirado e nada mais.

Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
Desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular”, então lhe digo
“Não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo!”
Qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
Misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
Pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
Que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
Uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
E que se chame “Nunca mais”.

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
Com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
Enquanto a mágoa me envenena: “Amigos? sempre vão-se embora.
Como a esperança, ao vir a aurora, ele também há de ir-se embora.”
E disse o Corvo: “Nunca mais.”

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
Julgo: “É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
E a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
De seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: o ritornelo
De “Nunca, nunca, nunca mais”.

Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
Girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais
E, mergulhado no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
Visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
Com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
Grasnava sempre: “Nunca mais.”

Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,
Eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
Dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
Dessa poltrona em que ela, ausente, à luz cai suavemente,
Já não repousa, ah! Nunca mais?

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
Ali descessem a esparzir turibulários celestiais.
“Mísero!, exclamo. Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus,
Esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora,
Sorve-o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

“Profeta!? brado? Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
Que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
De algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
Mansão de horror, que o horror habita, imploro, dize-mo, em verdade:
Existe um bálsamo em Galaad? Imploro! Dize-mo, em verdade!”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

“Profeta!” exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”

“Seja isso a nossa despedida! Ergo-me e grito, alma incendida.
Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu voo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
Sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
E a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,
Não há de erguer-se, ai! nunca mais!

O autor do blog de onde retirei esta versão compara-a com as de Fernando Pessoa e Machado de Assis e considera a tradução de Milton Amado (1913-1974) "a mais bela das traduções para o português." e que "conseguiu o feito de transportar esta energia singular desse poema para a língua portuguesa." Milton Amado foi um jornalista brasileiro que ficou conhecido principalmente pelas suas traduções, nomeadamente a de Don Quixote de la Mancha.

A outra tradução que me parece merecer transcrição é a de João Köpke (1852-1926, escritor e tradutor brasileiro.

 O Corvo – tradução de João Köpke

Meia noite seria, hora triste! alquebrado
E de tédio vencido, uma vez, debruçado
Sobre tomo e mais tomo, em que antigos autores
Expuseram saber, que bem raros leitores
Têm hoje, eu meditava, o lido ponderando,
Que em tais livros de antanho andara consultando,
E já, do cochilar, meio ao sono passava,
Quando ouvi de repente um bater, que soava
À porta de meu quarto, ali à mão, baixinho
Como o bater de quem batesse de mansinho,
Batesse de mansinho à porta de meu quarto.
Dentro de mim, mal o ouvi, disse eu: “A horas tais,
Quem pode vir bater à porta do meu quarto?
Alguém que me procura. Há de ser. Nada mais”.


Era então – claramente ainda hoje o relembro!
Bem entrado era então o inclemente Dezembro;
E seu espectro, no chão, cada brasa deixava,
Que, aos poucos, a morrer, no lar agonizava.
Aflito estava eu já por que nascesse o dia;
E, em vão, dessa leitura, ao meu sofrer, queria
Tirar alívio – alívio à crua e dura mágoa;
Alívio, que abrandasse a enorme, funda mágoa
De haver perdido, haver perdido, ó sim, Lenora,
A virgem radiante, a quem saudade chora!
A virgem peregrina, a quem os anjos chamam
Lenora – Aquela a quem, nos coros triunfais,
Lenora, lá no céu, os anjos ora chamam
E nome não terá na terra nunca mais!


E o frouxo farfalhar, que vinha das cortinas
De seda roxa, incerto e mesto, nas retinas
me punha visões tais, e, na alma, tais terrores
Que iguais nunca eu sentira; e em tão cruéis tremores
Me entrava a sacudir que, por conter os saltos
Ao coração – por ver quedar os sobressaltos
Em que dúbio tremia, entrei a repetir,
A repetir sem conta, alheio a repetir:
“Está alguém a bater à porta do meu quarto;
Bate alguém, certamente, à porta do meu quarto;
Alguém que me procura e quer falar. Decerto,
Alguém, que, sem querer, se atrasou. Pois que mais
Pode ser?... É alguém. Há de ser. É, decerto.
É, decerto, isto mesmo. Há de ser. Nada mais”.


A alma se me aquietou assim; e, então, perdendo,
Perdendo a hesitação, afoito fui dizendo:
“Quem quer que vós sejais, ou senhor, ou senhora,
Vosso perdão aqui sinceramente implora
Quem, quase a cochilar, confessa, e tão de manso
Batendo vós à porta, à porta tão de manso
Batendo, tão de manso, à porta do seu quarto,
Mal pôde perceber que à porta do seu quarto
Batíeis”. Neste ponto, à porta dirigindo
Os passos, neste ponto, agora, eu, acudindo
À porta, ao enfrentá-la, abri-a pronto busco;
E, de braço estendido, ao tocar-lhe os umbrais,
Escancaro-a de vez num movimento brusco:
Lá fora, a escuridão. E só. E nada mais.


E, dessa escuridão, cravando o olhar no fundo,
A revolvê-la estive, a revolver-lhe o fundo,
Surpreso, apavorado, hesitante, a sonhar
Sonhos, que não ousou ninguém jamais sonhar.
Mas, o silêncio, mudo: o mesmo sempre. E, a treva,
Calada em frente a mim, nenhum indício a treva
Me dava. Dela só, somente me chegava,
Me chegava ao ouvido em voz, que o murmurava,
Um nome, e em murmúrio, um nome só, Lenora!
Era eu que o murmurava; era eu, e já Lenora
Eis o eco a responder, Lenora repetindo;
Palavra, que só eu, na treva, entre as letais
Angústias da incerteza, em sonhos me afundindo,
Ficara a repetir. Só isso. E nada mais.


Voltando ao quarto, então, com a alma em fogo a arder,
Com pouco ouvi de novo, ouvi baixo bater,
Bem de leve outra vez, mas mais alto um pouquinho,
Mais alto desta vez, mais alto um bocadinho.
“É, com certeza”, eu disse, “é com certeza, agora,
Uma coisa qualquer que bate lá de fora
Nas gelosias. É. Mas será?... Quem o sabe?...
Quem sabe que mistério há nisto? Quem o sabe?...
Sossega, coração! e deixa-me que o veja;
Que, por meus olhos, sonde o que for que ali esteja;
Que sonde o que isto for; que o sonde por meus olhos;
Que o mostre ao meu pavor, e, em linhas naturais,
O fato ponha à luz, mostrando-o claro aos olhos.
É, com certeza, o vento. O vento e nada mais.”


Para a janela, pois, crescendo, eu a escancaro;
E, mal o olhar firmei, logo o vulto deparo
De um corvo senhoril dos bons tempos de outrora,
Que, da lufada em pós, entrando lá de fora,
E circungira e paira e se vai, por fim, pôr,
Sem saudar, nem deter-se ou pousar, se vai pôr,
Com ares de fidalgo ou fidalga, assentado
Bem por cima da porta, ao alto empoleirado
Da porta do meu quarto, em um busto de Palas;
Alcandorado ali sobre o busto de Palas;
Alcandorado ali, do branco busto em cima;
Do branco busto sobre as formas divinais.
Nesse busto pousou, que a minha porta encima.
Pousou; deixou-se estar. Só isso, e nada mais.


Ao ver dessa ave negra o modo assim severo,
Ao ver com que decoro e com que porte austero,
Ali, defronte a mim, tão grave procedia,
Desfez-se num momento aquela fantasia,
Que a mente me assaltara, e transmudou-se em riso.
“Embora”, disse eu, pois, dando expansão ao riso,
“Tosado, embora, cerce o teu penacho veja,
Não quero crer que tal a covardia seja
Tachada punição. Não és um velho corvo,
Repelente e fatal, que foges ao céu torvo.
Certo, um título tens e foros de grandeza;
Tens estirpe e brasões nos reinos avernais.
Dize, pois, qual teu nome entre a ilustre nobreza
De Plutão?” E tornou-me o corvo: “Nunca mais”.


De pasmo me tomei ao ver com tal clareza
Falar essa ave horrenda, embora, com certeza,
Sentido não tivesse, ou pouco ou nulo alcance,
A resposta, que deu assim tão de relance.
De pasmo me tomei, porquanto ninguém pode
Fugir a concordar, ninguém, na vida, pode
Dizer que outro mortal já tivesse a ventura
De ver pousar uma ave, ou outra criatura
Ao alto, sobre a porta, a porta do seu quarto;
Sobre o busto, que encime a porta do seu quarto;
Pousar, deixar-se estar e nada mais; uma ave
Horrenda, que viesse, afrontando hibernais
Rigores de procela, à noite, austera e grave,
Dizer-lhe que no inferno a chamam Nunca mais.


Assustou-me a resposta assim tão bem cabida,
Que rompeu a mudez até aí mantida.
Assustou-me a resposta; e, então, para explicá-la,
Eu me pus a dizer qual quem a medo fala:
“Nestas palavras só consiste certamente
O seu vocabulário; e, nelas, inconsciente,
Reproduz o que ouviu. Com certeza, a algum dono
Infeliz pertenceu. Pode ser que a algum dono
Tivesse pertencido, a quem com teimosia
Perseguisse a desgraça, e, na monotonia
Desse estribilho só, distração procurasse
As dores, que gemia – as dores sem iguais
Do seu sofrer, e a mágoa aos lábios lhe levasse,
Por desabafo e alento, o grito: “Nunca mais!”.


No entanto, o corvo, só, pousado sobre o busto
Quedo, pousado e só, dali de sobre o busto,
Não me deu mais que tal resposta, em que pusera
Talvez toda a sua alma. E nem ao que dissera
Mais nada acrescentou. Nem uma só das penas
Moveu. Não mais moveu de leve uma das penas
Que fosse, a não ser quando eu, mal e mal, baixinho,
E murmuro, falei, mas baixo, bem baixinho:
“Em antes dele já perdi muitos amigos:
Perdido tenho, sim, por vária vez, amigos,
Que foram sem retorno. Irá ele também
Sem retorno, assim como aos caros ideais
A esperança se foi, e, com o dia que vem,
Este irá. Grasna o corvo apenas: “Nunca mais”.


Porém, mais uma vez, essa ave transformando
A tristeza à minha alma em riso a transmudando,
Fiz rodar um assento e dela o pus em frente,
E do busto e da porta em face justamente.
Bem defronte lho pus; e o corpo, no veludo,
Todo o peso largando, afundei; e já tudo
Que estivera a pensar – idéia ou fantasia,
Comecei a prender como elos, que queria
Jungidos, para ver que sentido quisera
Aquela ave ominosa à resposta, que dera,
Inculcar; para ver se encontrava o sentido
Que essa ave de feições e gestos espectrais
Na resposta pusera; – achar com que sentido
No crocitar dizia apenas: “Nunca mais”.


Para tal, eu, sentado, a rever, mas comigo,
O que vira, fiquei, mas a sós, só comigo,
Sem palavra sequer dirigir à agoureira
Ave, que, com o olhar, qual rúbida fogueira,
O âmago ao coração me estava requeimando.
No coxim de veludo a cabeça pousando,
No coxim, que o clarão da luz como um olhar
De cupidez voraz descia a iluminar,
Eu, a gosto, escrutava o que quisera o corvo
Dizer no seu falar, que tinha em tanto estorvo
A fácil compreensão. Nesse coxim, agora,
A fronte eu descansava, em que d’Ela jamais
A fronte pousará qual se pousava outrora.
Não mais se pousará, oh, nunca, nunca mais!


Como que o ar então me pareceu mais denso;
A modo que um perfume ali pairou de incenso,
Que, em turicremo vaso, ao ar silente alcançassem
Serafins, cujos pés em cadência roçassem
A alcatifa, que o chão de meu quarto alfaiava.
E, pois, à inspiração, que, sobre mim baixava,
Cedendo, a me exprobar do pavor, que sentia,
Contra mim revoltado, em voz alta dizia:
“Desgraçado! Teu Deus, teu Deus, por estes anjos,
Teu Deus trégua te dá; teu Deus por estes anjos,
Remédio à dor te manda. Esquece de Lenora
A perda, e empina a taça, em que as dores mortais
Tu podes afogar. Risca dessa Lenora
Na mente o nome”. E grasna o corvo: “Nunca mais”.


“Profeta”, eu disse então, “ave ou demônio sejas,
Profeta mesmo assim! Quer vindo aqui tu sejas
Atentar-me, ou lançado o sopro das borrascas
Te houvesse a esta plaga – aflito, mas das vascas
Do desespero livre; – ao ermo desta plaga,
Que um poder infernal no seu eflúvio alaga;
Ao sei deste lar, onde o terror domina –
Se tem a dor, que assim saudade me propina,
Lenitivo, que a acalme, oh, di-lo, que to imploro!
Oh, dize-me se tem este luto, em que choro,
Trégua, que ao meu sofrer as torturas abrande;
Lenitivo, que à dor embote os seus punhais
E, à saudade, que peno, o esquecimento mande.
Oh, di-lo, corvo, di-lo!” E o corvo: “Nunca mais”.


“Profeta”, eu disse então, “ave ou demônio sejas,
Profeta mesmo assim e como quer que o sejas!
Pelo Céu, que nos cobre, e o Deus, que veneramos,
Por tudo quanto os dois por mais caro prezamos,
Dize, dize à minha alma, a que a dor tanto preme,
À alma, que esta saudade infinda e crua geme,
Dize por compaixão se, no Éden distante,
Em seus braços verá a Virgem fulgurante;
Aquela Virgem santa, a que, no céu, Lenora
Chamam, e que ninguém na terra chama agora;
A Virgem, por quem peno – a Virgem, que a saudade,
Me traz sempre na mente em sonhos perenais!
Oh, dize se algum dia abraçá-la, em verdade,
Lá no céu, poderá!” E o corvo: “Nunca mais”.


“Que seja essa resposta a nossa despedida,
Ou ave ou tentador!” bradei com a voz erguida,
Num salto em pé me pondo. “Oh, volta à tempestade!
Volta à noite do inferno! Em minha soledade
Que eu fique sempre só! Não deixes uma pena,
Nem uma pena só, nem uma negra pena
Das tuas, em penhor desta mentira atroz,
Que acabas de afirmar com refalsada voz!
De sobre o busto sai! O vulto, eia, retira
De sobre a minha porta! O adunco bico tira
Daqui do coração, onde o cravaste! Oh, vai-te
Embora e deixa em paz meus tristes penetrais!
Ou ave ou tentador, deixa-me em paz! Oh, vai-te!”
E, imóvel, diz o corvo apenas: “Nunca mais!”.


E, sem mais se mover, ali se tem pousado,
Imóvel sempre, o corvo; ali, alcandorado
De Palas sobre o busto – erguido ao alto – acima
Da porta do meu quarto – e mudo e quedo a encima!
E os olhos seus são como os olhos de um demônio
Absorto a maquinar – são olhos de um demônio!
E, da lâmpada a luz, sobre ele em cheio desce
O clarão com fulgor, que vivo resplandece,
E lhe estampa no chão a dura e negra sombra!
E minha alma, oh, horror! da treva dessa sombra,
Que flutua no chão pairando eternamente,
Minha alma do negror, que os giros infernais
Adensam no voar, que paira eternamente,
Nunca mais se há de erguer! Ai, nunca! Nunca mais!

segunda-feira, 9 de abril de 2018

O Corvo - outra tradução

A tradução de O Corvo, de Edgar Allan Poe, feita por Fernando Pessoa é um magnífico exemplo de como é possível transpor a ideia, o cenário e a acção entre duas línguas tão distintas, mantendo a musicalidade e a emoção. Pelo contrário, outro grande escritor da língua portuguesa deixou-nos o que classifico de um péssimo exemplo. É a minha opinião. Transcrevo a tradução de O Corvo por Machado de Assis:

O Corvo
por Edgar Allan Poe, traduzido por Machado de Assis

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranquilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: "Nunca mais."

“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!











 Quanto a mim, falta-lhe ritmo, melodia, as rimas são pobres e perde-se completamente o ambiente de tristeza e terror que o original tem e que Fernando Pessoa soube preservar. A métrica adoptada, tão diferente da do original, quebra o ritmo, ao passar de estrofes de 5 versos longos (~14 ou 15 sílabas) e um curto (7 sílabas) para uma sequência de 8, 8, 14, 8, 10, 10, 10, 8, 12, 8, num total de 10 versos por estrofe (tanto quanto consegui medir. Há mesmo diversos versos nesta tradução que considero poeticamente horríveis. Por exemplo: "Disse; a porta escancaro, acho a noite somente" ou "De algum mestre infeliz e acabrunhado / Que o implacável destino há castigado" ou ainda "Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!" e até o verso final "Não sai mais, nunca, nunca mais!" Machado de Assis pode ser um grande escritor, mas teve um momento infeliz ao tentar esta tradução.