sábado, 12 de maio de 2018

O noivado do Sepúlcro . Soares de Passos

"Que saudades que eu já tinha da minha alegre casinha, tão modesta como eu". Não, não me vou referir à canção da Milu (assassinada por um grupo de rock qualquer).  Mas a introdução refere-se ao meu regresso a casa depois de ter tido alta dos 10 dias em que tive "a enxerga do hospital por leito". Finalmente liberto do hospital, volto a mudar completamente de estilo. Escolhi um longo poema de Soares de Passos, "O Noivado do Sepulcro", não pela qualidade da poesia, mas porque tenho gravada na minha memória dos tempos de juventude uma paródia muito cómica a este poema. Foi desta paródia que tirei a frase acima. Esta mensagem vale pela paródia, mas, para se compreender o seu significado, é necessário visitar o poema original de Soares de Passos, de que apenas tenho conservados nas minhas memórias as primeiras quadras, mas que é fácil encontrar na net. O poema é muito longo e o tema não é sequer agradável; a morte pode ser objecto poético, mas o tratamento que Soares de Passos lhe dá parece-me lamentável. Mas sigamos para o poema, seguido da paródia. Infelizmente a memória falha-me na parte final. As reticências (...) substituem a falha.

O Noivado do Sepulcro - Soares de Passos

Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?

"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?

"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!

- "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda,
Responde um eco suspirando além...
- "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?

"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
- "Oh vejo sim... recordação fatal!
- "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.

Soares de Passos, in 'Antologia Poética'


Paródia a O Noivado do Sepulcro (incompleta)


Vai alto o preço da vitela assada
Já meia dose cem vinténs custou;
Hoje é o dobro porque a tal cambada
O preço à carne nem a pau baixou.

Na escura tasca doce paz reinava
Mas eis que a porta a dura mão cedeu;
E o cozinheiro que dormindo estava,
D'entre as panelas a cabeça ergueu.

Ergueu-se, então p’ra que o freguez não fuja,
Esfrega os olhos, assoa-se e ri;
O caldo geme na panela suja
E o gato mia p’ra fazer chi-chi..

Entra um freguez e uma formosa dama
E eis que o par abancou enfim...
E à luz do gás de tão sinistra chama,
Pegou na lista e falou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tasca não cessei d'amar,
"Toma esta lista, minha massa é tua,
"Escolhe o petisco que te apraz cear."

“Eu, que há três dias, adorado Antero,
"A enxerga tenhpo do hospital por leito,
"Por ter larica e por ser débil quero
"Vitela assada que faz bem ao peito."

"Vitela! engano que na tasca finda,
"Vitela assada! P’ra que presta aquilo:
"Quem da vitela se lembrará ainda
"Depois que está a seis vinténs por quilo?

"A carne é cara, minha doce amada
"Escolhe peixe, vê lá isso então...”
"Rapaz, não ouves,” diz com voz magoada
"Dois pratos já de bacalhau com grão!”



Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma mesa de tasca vazia,


Porém mais tarde, quando foi volvido
Da tasca escura o gelado pó,
Foram achados, um ao outro unidos,
ambos chupando numa espinha só.

Autor desconhecido. Citado de memória.

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