domingo, 29 de abril de 2018

Der Lindenbaum (A tília) - W. Müller

Afinal não resisti a dar um lugar ao Lied de Schubert Der Lindenbaum (A Tília). O poema, da autoria de W. Müller, é lindíssimo e o ambiente poético vai mais além, na minha opinião, do que o de A Truta. A música de Schubert também é maravilhosa. Não encontrei uma tradução da letra que me satisfizesse e tive de introduzir algumas alterações numa tradução brasileira. Já soube este poema de cor, mas agora não sou capaz de o recitar inteiramente sem consultar uma cábula.

Der Lindenbaum – W. Müller

Am Brunnen vor dem Tore,
da steht ein Lindenbaum;
ich träumt’ in seinem Schatten
so manchen süssen Traum.

Ich schnitt in seine Rinde
so manches liebe Wort;
es zog in Freud’ und Leide
zu ihm mich immer fort.

Ich musst’ auch heute wandern
vorbei in tiefer Nacht,
da hab’ ich noch im Dunkel
die Augen zugemacht.

Und seine Zweige rauschten,
als riefen sie mir zu:
“Komm her zu mir, Geselle,
hier find’st du deine Ruh’!”

Die kalten Winde bliesen
mir grad’ ins Angesicht,
der Hut flog mir vom Kopfe,
ich wendete mich nicht.

Nun bin ich manche Stunde
entfernt von jenem Ort,
und immer hör’ ich’s rauschen:
“Du fändest Ruhe dort!”




Tradução:

A Tília

Junto à fonte diante do portão
Ergue-se uma tília;
Quantos sonhos doces
Sonhei à sua sombra.

No seu tronco gravei
Tantas palavras de amor;
Na dor e na alegria
Para ela sempre me atraiu.

Hoje tive de passar por ela
No meio da noite profunda,
E mesmo na escuridão
Tive que fechar os olhos.

E os seus galhos sussurravam,
Como se me chamassem:
“Chega-te a mim, companheiro,
Aqui encontrarás a tua paz!”

Os ventos frios sopravam
Com força na minha face,
O chapéu voou-me da cabeça,
Mas não me voltei para trás.

Agora estou a muitas horas
De distância daquele lugar
Mas continuo a ouvir o sussurro
“Aqui encontrarás a paz!”

sábado, 28 de abril de 2018

Die Forelle (A truta) - Christian Friedrich Daniel Schubart

Como letra de uma canção chegou a vez de Die Forelle (A Truta). Confesso que hesitei entre A Truta e Der Lindenbaum (A Tília), mas por fim preferi a primeira opção. O nome do autor do poema é-me desconhecido e o que me interessa é mais o Lied de Schubert. A magnífica voz de Dieter Fischer-Dieskau dá um particular relevo ao Lied. Apresento a letra completa do poema e uma tradução para português.

Die Forelle
Franz Schubert

By Christian Fr. D. Schubart (1739-1791)

In einem Bächlein helle,
Da schoß in froher Eil
Die launische Forelle
Vorüber wie ein Pfeil.

Ich stand an dem Gestade
Und sah in süßer Ruh
Des muntern Fischleins Bade
Im klaren Bächlein zu.

Ein Fischer mit der Rute
Wohl an dem Ufer stand,
Und sah's mit kaltem Blute,
Wie sich das Fischlein wand.

So lang dem Wasser Helle,
So dacht ich, nicht gebricht,
So fängt er die Forelle
Mit seiner Angel nicht.

Doch endlich ward dem Diebe
Die Zeit zu lang. Er macht
Das Bächlein tückisch trübe,
Und eh ich es gedacht,

So zuckte seine Rute,
Das Fischlein zappelt dran,
Und ich mit regem Blute
Sah die Betrogene an.

Tradução:


Num límpido riacho
A truta caprichosa
Precipitva-se em alegre pressa
Como uma seta.

Eu estava sobre a margem
E via em doce tranquilidade
O alegre pequeno peixe
Banhar-se na clara corrente do riacho.

Um pescador com a sua cana
Estava sobre a margem
E via com sangue frio
Como o peixe se remexia.

Enquanto a água permanecer
Clara, pensava eu,
Ele não apanhará a truta
Com a sua cana

Mas, por fim, o ladrão,
Cansado de esperar,
Perfidamente o riacho turvou,
E antes que eu me desse conta,

A sua cana estremeceu,
E nela o peixe estrebuchou,
E eu com o sangue a ferver
Vi a pobre morrer.

Esta tradução à letra não tem, evidentemente, qualquer valor poético e é apresentada apenas para  compreensão do texto.

Mas, muito mais do que o Lied, por muito bem que seja interpretado, vale, para mim, o quinteto com variações sobre os temas da canção. Embora saia do âmbito deste blog, não resisto a deixar uma ligação para uma interpretação deste quinteto, uma das minhas músicas de Schubert preferidas.


quarta-feira, 25 de abril de 2018

Despertar - João Pedro de Andrade

Insisto uma vez mais em escolher uma poesia do meu pai, já que a que ontem aqui deixei era uma pálida amostra da sua obra poética da juventude. Agora, do único livro de poesia que publicou, já ontem aqui citado, Castelos, de 1923, escolhi um dos sonetos aí contidos. Respeitei a ortografia original.

               Despertar

Somos da terra, amor, somos da terra...
P'ra que criar um vôo imaginário
P'lo ceu em fora, se o horizonte vário
Ao nosso olhar cativo se descerra?

Se a vontade divina nos desterra
Neste torrão longinquo e solitário,
P'ra que buscar um mundo extraordinário
Cuja visão remota nos aterra?

O mundo é vasto, o amor mais vasto ainda.
Á nossa volta, a Natureza é linda.
De braço dado pela estrada fora,

Sigamos, pois, serenos e contentes,
Olhando a braza rubra dos poentes
Ou o despontar fantástico da aurora.


terça-feira, 24 de abril de 2018

Castelo de Santiago

Passando a uma intenção e a um estilo completamente diferentes, tomo a liberdade de transcrever aqui um curto poema do meu pai, João Pedro de Andrade, poema que apenas posso citar de cor, com a possibilidade de erro inerente. Nem sei se o que tiro da memória está completo, mas este poema sempre significou para mim uma grata recordação. O meu pai tornou-se mais conhecido como dramaturgo, escritor, ensaísta e crítico literário e de teatro, mas na juventude dedicou-se à poesia. Ainda muito jovem, publicou várias poesias no jornal da sua terra, Ponte de Sor, os Ecos do Sor. Mais tarde, em 1923, chegou a publicar um livro de versos, Castelos, em edição do autor. Mas o poema que me marcou, apesar de pelo título se poder integrar nesse livro, não consta dele, nem sei onde ou sequer que se foi publicado, só sei que o conheço de cor por o ter ouvido ao meu pai.

Castelo de Santiago

Castelo de Santiago,
Castelo altivo e tristonho,
De aspecto solene e vago
És a ruína dum sonho.

Talvez um dia em teu seio
Eu vá repousar com calma,
Quando findar este anseio
Que trago dentro da alma.

Castelo de Santiago


Esta última quadra pode parecer estranha a quem não souber que o interior do Castelo de Santiago contém o cemitério da cidade.

domingo, 22 de abril de 2018

Green - canção / poema VI de Sagesse (Le ciel est par-dessus le toit)

O poema Green de Verlaine foi posto em música por diversos compositores. Por isso tanto se pode justificar a sua inclusão neste blog na categoria de poesia como na de letra de canção. Existem, pelo menos, versões cantadas de Green dos compositores Claude Debussy, Gabriel Fauré e Reynaldo Hahn. Mais recentemente, Léo Ferré apresentou também uma versão cantada.

Uma muito interessante análise comparativa das diversas versões musicais do poema é apresentada aqui.


A versão de Léo Ferré pode ser vista e ouvida aqui.

Sobre as palavras com que Léo Ferré introduz a canção, quando afirma que Verlaine escreveu esta poesia "à intenção de Rimbaud", há que esclarecer que Ferré se confundiu; o poema é "uma oferta de amor, uma homenagem respeituosa destinada a fazer as pazes com Mathilde, uma declaração de amor cheia de desejo e um rogo a que ela não o rejeite e aceite a reconciliação", conforme descrito na análise comparativa anterior.

E já que falamos de Verlaine, será apropriado apresentar outro dos seus poemas, também dos meus preferidos:

     VI de Sagesse

Le ciel est, par-dessus le toit
           Si bleu, si calme!
Un arbre, par dessus le toit,
           Berce sa palme.

La cloche, dans le ciel qu'on voit,
           Doucement tinte.
Un oiseau sur l'arbre qu'ou voit
           Chante sa plainte.

Mon Dieu, mon Dieu, la vie est là
            Simple et tranquille.
Cette paisible rumeur-là
            Vien de la ville.

Qu'as-tu fait, ô toi que voilà
            Pleurant sans cesse,
Dis, qu'as-tu fait, toi que voilà
            De ta jeunesse?

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Green - Paul Verlaine

Não sei bem quando nem como me apaixonei pela poesia de Verlaine. Suponho que terá sido já depois dos meus 20 anos. Devo ter visto algures um dos seus poemas e pouco depois decidi comprar um pequeno volume da colecção Le Livre de Poche que continha os Poèmes saturniens seguidos das Fêtes galantes. Mais tarde comprei, da mesma colecção, o volume que contém La bonne chanson, os Romances sans paroles e a colectânea Sagesse.




São muitos os poemas de Verlaine que estão entre as minhas preferências poéticas. Sei muitos de cor. A escolha do primeiro para apresentar aqui não foi fácil. Mas decidi que o meu mais preferido é este:


                           Green
 

Voici des fruits, des fleurs, des feuilles et des branches
Et puis voici mon coeur qui ne bat que pour vous.
Ne le déchirez pas avec vos deux mains blanches
Et qu'à vos yeux si beaux l'humble présent soit doux.


J'arrive tout couvert encore de rosée
Que le vent du matin vient glacer à mon front.
Souffrez que ma fatigue à vos pieds reposée
Rêve des chers instants qui la délasseront.


Sur votre jeune sein laissez rouler ma tête
Toute sonore encore de vos derniers baisers;
Laissez-la s'apaiser de la bonne tempête,
Et que je dorme un peu puisque vous reposez.




quarta-feira, 18 de abril de 2018

Liberdade - Fernando Pessoa

Referi o poema Liberdade, de Fernando Pessoa, a propósito do poema homónimo de Armindo Rodrigues. Apesar do de Pessoa ser bastante conhecido e fácil de encontrar, acho que merece ser incluído no meu conjunto de poemas.

Liberdade – Fernando Pessoa

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa…

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor de tudo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…

Como disse, não me parece que faça algum sentido comparar este poema com o de Armindo Rodrigues. As liberdades a que se referem são muito diferentes: Armindo Rodrigues refere-se à liberdade frente à opressão.Tem uma carga ideológica marcada e um estilo e um ritmo condicentes; por outro lado, Fernando Pessoa refere-se à liberdade em relação às convenções, como se diria agora contra o politicamente correcto. É mais um comentário jocoso, talvez nem sequer muito sincero (Fernando Pessoa certamente tinha biblioteca e apreciava livros, apesar de os apelidar de "papéis pintados com tinta". Nada a ver, portanto, com o grito de liberdade de Armindo Rodrigues.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Tout va très bien, Madame la Marquise!

Ouvi uma vez na rádio, na pequena telefonia dos meus pais, aparelho Philips modesto de baquelite esverdeado com uns frisos metálicos que me encantavam, telefonia que por vezes começava a fazer ruídos estranhos que o meu pai remediava com umas pancadas dadas com precisão científica no aparelho, dizia eu, ouvi uma vez na rádio um canção com música bem ritmada cantada por um coral afinado. O estribilho era "Tout va très bien, Madame la Marquise!", mas nunca consegui compreender o resto da letra, até porque na época ainda não tinha começado a aprender francês. Nos anos seguintes ainda ouvi a mesma canção algumas vezes, mas depois passou de moda, como sempre acontece. Qual é o meu espanto quando, navegando na net, vejo uma referência a esta canção e logo a seguir descobri um vídeo, a letra completa e a história da sua génese. A letra é extremamente cómica dentro do género de humor negro. Eis a letra:

Tout va très bien, Madame la Marquise

Allô, allô, James, quelles nouvelles
Absente depuis quinze jours,
Au bout du fil je vous appelle
Que trouverai-je à mon retour?
Tout va très bien, madame la Marquise
Tout va très bien, tout va très bien
Pourtant il faut, il faut que l'on vous dise
On déplore un tout petit rien
Un incident, une bêtise,
La mort de votre jument grise
Mais à part ça, Madame la Marquise
Tout va très bien, tout va très bien!

Allô, allô, Martin, quelles nouvelles
Ma jument grise, morte aujourd'hui?
Expliquez moi, cocher fidèle,
Comment cela s'est-il produit?

Cela n'est rien, madame la Marquise
Cela n'est rien, tout va très bien,
Pourtant il faut, il faut que l'on vous dise
On déplore un tout petit rien.
Elle a périt dans l'incendie
Qui détruisit vos écuries
Mais à part ça, madame la Marquise
Tout va très bien, tout va très bien!

Allô, allô, Pascal, quelles nouvelles
Mes écuries ont donc brûlé?
Expliquez moi, mon chef modèle
Comment cela s'est- il passé.
Cela n'est rien, madame la Marquise,
Cela n'est rien, tout va très bien!
Pourtant il faut, il faut que l'on vous dise
On déplore un tout petit rien
Si l'écurie brûla, madame,
C'est qu'le château était en flamme,
Mais à part ça, madame la Marquise
Tout va très bien, tout va très bien!

Allô, allô, Lucas, quelles nouvelles
Notre château est donc détruit?
Expliquez moi car je chancelle!
Comment cela s'est- il produit?

Eh! bien voilà, madame la Marquise
Apprenant qu'il était ruiné
A peine fut-il rev'nu de sa surprise
Que Monsieur l'Marquis s'est suicidé
Et c'est en ramassant la pelle
Qu'il renversa toutes les chandelles
Mettant le feu à tout l'château
Qui s'consuma de bas en haut
Le vent souflant sur l'incendie,
Le propageant sur l'écurie
Et c'est ainsi qu'en un moment
On vit périr votre jument…

Mais à part ça, madame la Marquise
Tout va très bien, tout va très bien!


O vídeo está disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=T5WdpSPeQUE

e há mais explicações em:
http://www.dutempsdescerisesauxfeuillesmortes.net/paroles/tout_va_tres_bien.htm

Fiquei a saber que a canção foi criada em 1935 por Paul Misakri, autor da letra e da música.

domingo, 15 de abril de 2018

Pastelaria de Mário Cesariny

São muitas as poesias de Mário Cesariny que gostaria de incluir nesta série. Algumas sei-as de cor. Muitas são minhas conhecidas há muitos anos. Cesariny é um dos poetas portugueses meus preferidos. Começo pela Pastelaria, um dos seus poemas mais conhecidos e um dos que possuem, para mim, especial significado, que é afinal o que importa:

PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
 nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
— ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o, que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito, alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

sábado, 14 de abril de 2018

Mote e glosas tradicionais e humorísticos

Ouvi, há muitos anos, o meu avô recitar uma poesia cheia de humor pelas contradições de situações cómicas. Tratava-se de uma poesia tradicional sob a forma de mote e glosas. Fixei o poema de cor, mas com o tempo acabei esquecendo a glosa final. Não consegui nem encontrar qualquer referência que me ajudasse nem reconstituir de memória o que falta. Mesmo assim, pela sua graça, acho útil incluir nesta série de poesias. Ei-la:

Nas trevas dum claro dia
(mote e glosas)

Mote:
Por uma ladeira abaixo
Fui trepando devagar,
Caí por terra suspenso,
Sendo enterrado no ar.


Glosas:
1)
Nas trevas dum claro dia
Eu, parado, caminhava
E calado discursava
Sobre o que um mudo dizia.

Ao frio do Sol eu tremia
E buscando o ardor dum riacho
Entre os gelos me encaixo
P’ra buscar um suadouro
E subi, qual um besoiro,
Por uma ladeira abaixo.

2)
Nisto descubro encoberta
A mais hedionda beleza,
Opulenta de pobreza
E a panhonha mais esperta.

Lutando em dúvida certa
Entrei p’la terra a voar
E de pé me fui prostrar
Ante essa harpia divina
E do monte pr’á campina
Fui trepando devagar.
3)
Eu de sede tinha um rio
A crescer fora da boca
E de cheia senti oca
A cabeça a arder em frio

Duma ovelha ouvi o pio
E o balar dum pisco imenso
E onde o claro era mais denso
Fechando os olhos, vi tudo,
E ao ver a Páscoa no Entrudo
Caí por terra suspenso.

4)


Sendo enterrado no ar.

Que poderá causar um enterro no ar? Fica o mistério. Se algum dos meus numerosos (!) leitores tiver alguma pista, agradeço comunicação.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Mes jeunes anées

Nessa minha primeira viagem ao estrangeiro, o modo de viajar era muito diferente do que se usa hoje em dia. Claro que já havia, desde há muito, voos directos Lisboa-Paris, mas destinavam-se apenas a uma classe privilegiada que podia pagar os custos elevados que eram praticados. Para membros da pequena burguesia, como nós, havia o Sud-Express, que demorava 2 dias a chegar a Paris, implicava mudança de comboio em Irun por causa da divergência das bitolas, que para mim inexplicavelmente, ainda perdura. Quem podia pagar as chamadas couchetes ainda podia passar a noite deitado, mas a maioria dos viajantes dormiam sentados no seu lugar. Mas, para os jovens como nós, havia ainda uma solução mais económica: viajar à boleia. Foi o que a minha irmã e eu escolhemos, mas por precaução só a partir de Madrid. O pouco dinheiro que tínhamos ganho a dar explicações a alunos de liceu dificilmente dava para mais. Assim, em Madrid pusemo-nos à estrada na esperança de que alguém nos levasse em direcção à fronteira francesa. Após umas horas de tentativas, tivemos de desistir e voltámos ao comboio. Mas a partir de Bayonne as coisas correram melhor e o resto da viagem foi feita com base no chamado auto-stop e pernoitando em albergues da juventude, para o que nos tínhamos munido do respectivo cartão de membro.

A estadia em França, após uns dias, poucos, de turismo em Paris, começou com trabalho comunitário num campo da organização Jeunesse et Reconstruction, ligada à obra do Abbé Pierre. Depois rumámos aos Alpes, onde plantei milhares de pinheiros como protecção contra as avalanches. Por fim fomos fazer vindimas perto de Bordéus. Em todas estas actividades tínhamos direito a alojamento, a refeições e a um pequeno argent de poche. Foi no último campo de vindimas, num grupo internacional de jovens, que participámos em noites de convívio que me deixaram belas recordações. E foi aí que, numa dessas noites, ouvi dois membros do nosso grupo cantar uma canção que nunca mais me esqueceu. Só muito recentemente, graças à internet, pude identificar a canção como sendo do reportório de Charles Trenet e pude recuperar a letra integral:

MES JEUNES ANNÉES - Charles Trenet

Mes jeunes années
Courent dans la montagne,
Courent dans les sentiers
Pleins d'oiseaux et de fleurs
Et les Pyrénées
Chantent au vent d'Espagne,
Chantent la mélodie
Qui berça mon coeur,

Chantent les souvenirs,
Chantent ma tendre enfance,
Chantent tous les beaux jours
A jamais finis
Et, comme les bergers
Des montagnes de France,
Chantent le ciel léger
De mon beau pays

Parfois, loin des ruisseaux,
Loin des sources vagabondes,
Loin des fraîches chansons d'eau,
Loin des cascades qui grondent,
Je songe, et c'est là ma chanson,
Au temps béni des premières saisons

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Au bois d'mon coeur

Até agora só tenho apresentado poesias e não inaugurei ainda o ciclo das letras de canções. Para começar vou citar uma canção de Georges Brassens.

A primeira vez que saí de Portugal, numa viagem de recreio, mas também de trabalho, já que, por razões financeiras e de gosto, além de turismo participei, acompanhando a minha irmã, em campos de trabalho para estudantes, foi em 1957 e o nosso primeiro destino foi, como não podia deixar de ser, Paris. Foi aí que numa tarde fomos ao cinema assistir ao filme La Porte des Lilas e foi nesse filme que apareceu Georges Brassens, ainda completamente desconhecido em Portugal e de quem nunca tínhamos ouvido falar. Mas foi encantamento à primeira vista, uma paixão que ainda hoje dura. Acompanhado pela sua eterna guitarra, Georges Brassens cantou Au bois d'mon coeur, cuja letra apresento de seguida.



AU BOIS DE MON COEUR

Au bois d’Clamart y a des petit’s fleurs
Y a des petit’s fleurs
Y a des copains au, au bois d´mon coeur
Au, au bois d´mon coeur.

Au fond d’ma cour j’suis renommé
Pour avoir le coeur mal famé.

Au bois d´Vincennes y a des petit’s fleurs
Y a des petit’s fleurs
Y a des copains au, au bois d´mon coeur
Au, au bois d´mon coeur.

Quand y a plus d’vin dans mon tonneau
Ils n’ont pas peur de boir’ mon eau.

Au bois d´Meudon y a des petit’s fleurs
Y a des petit’s fleurs
Y a des copains au, au bois d´mon coeur
Au, au bois d´mon coeur.

Ils m’accompagn’nt à la mairie
Chaque fois que je me marie.

Au bois d´Saint-Cloud y a des petit’s fleurs
Y a des petit’s fleurs
Y a des copains au, au bois d´mon coeur
Au, au bois d´mon coeur.

Chaque fois qu’ je meurs fidèlement
Ils suivent mon enterrement.

Au bois d´Cllamart y a des petit’s fleurs
Y a des petit’s fleurs
Y a des copains au, au bois d´mon coeur
Au, au bois d´mon coeur.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

O Corvo - Livros

Para acabar com a série de considerações sobre O Corvo e as suas traduções, que já vai longa, reproduzo agora as capas dos dois livros que possuo sobre este poema.

O primeiro é um livrito da editora ulmeiro com o título "O corvo e outros poemas . Edgar Allan Poe - Tradução de FERNANDO PESSOA" (colecção Mínima n.º 2). Além da tradução referida, apresenta traduções por Fernando Pessoa dos poemas Annabel Lee e Ulalume, uma tradução à letra do Corvo e um ensaio intitulado A Filosofia da Composição, no qual Poe faz uma análise da génese de The Raven.





O outro livro, "O CORVO - Poema de Edgar Allan Poe - Ilustrações de Gustave Doré", edição de Manuel Caldas, apresenta o poema original em inglês, a tradução de Fernando Pessoa, uma tradução para o castelhano de Juan Antonio Pérez Bonalde, precedidas de curtas apresentações de Poe, Doré, Pessoa e Pérez Bonalde. Tem ainda uma resenha sobre os gravadores que trabalharam as gravuras de Doré. Estas últimas preenchem 25 páginas, cada uma precedida de uma estrofe ou alguns versos de uma estrofe retirados da tradução de Pessoa, do original inglês e da tradução de Pérez Bonalde.

 A capa é ilustrada com uma das gravuras de Doré.

terça-feira, 10 de abril de 2018

O Corvo - mais traduções

Pensando que haveria, decerto, outros tradutores do poema de Poe, fiz o que eu julgava ser uma breve busca. Fiquei espantado ao achar 51 traduções (http://www.elsonfroes.com.br/mpoe.htm), algumas em prosa, muitas em verso. Este sítio cita ainda duas traduções para francês, ambas em prosa. Apesar de os autores serem poetas de renome (Baudelaire e Mallarmé), nenhuma me pareceu ter grande qualidade. Das traduções para português, nem consegui ler mais do que um pequeno número e, devo dizê-lo, a maioria não me agradou. No entanto há duas que me perece terem a qualidade mínima para merecerem figurar nesta resenha. São ambas de brasileiros. Apresento-as de seguida, sem comentários.

O Corvo - tradução de Milton Amado

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
A ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
E, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
Tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
“É alguém,  fiquei a murmurar, que bate à porta, devagar;
Sim, é só isso e nada mais.”

Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro
E o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda
Algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
E nome aqui já não tem mais.

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
Arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia
E a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais.”

Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
“Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
Mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
Que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
Assim de leve, em hora morta.” Escancarei então a porta:
Escuridão, e nada mais.

Sondei a noite erma e tranquila, olhei-a a fundo, a perquiri-la,
Sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
Só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: “Lenora!”
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: “Lenora!”
Depois, silêncio e nada mais.

Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,
Mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
“É na janela”, penso então. “Por que agitar-me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
O vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.
É o vento só e nada mais.”

Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
É um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,
Adeja e pousa sobre o busto, uma escultura de Minerva,
Bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
Empoleirado e nada mais.

Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
Desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular”, então lhe digo
“Não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo!”
Qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
Misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
Pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
Que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
Uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
E que se chame “Nunca mais”.

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
Com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
Enquanto a mágoa me envenena: “Amigos? sempre vão-se embora.
Como a esperança, ao vir a aurora, ele também há de ir-se embora.”
E disse o Corvo: “Nunca mais.”

Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
Julgo: “É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
E a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
De seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: o ritornelo
De “Nunca, nunca, nunca mais”.

Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
Girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais
E, mergulhado no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
Visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
Com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
Grasnava sempre: “Nunca mais.”

Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,
Eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
Dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
Dessa poltrona em que ela, ausente, à luz cai suavemente,
Já não repousa, ah! Nunca mais?

O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
Ali descessem a esparzir turibulários celestiais.
“Mísero!, exclamo. Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus,
Esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora,
Sorve-o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

“Profeta!? brado? Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
Que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
De algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
Mansão de horror, que o horror habita, imploro, dize-mo, em verdade:
Existe um bálsamo em Galaad? Imploro! Dize-mo, em verdade!”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

“Profeta!” exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”

“Seja isso a nossa despedida! Ergo-me e grito, alma incendida.
Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu voo dessa porta!
Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”

E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
Sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
E a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,
Não há de erguer-se, ai! nunca mais!

O autor do blog de onde retirei esta versão compara-a com as de Fernando Pessoa e Machado de Assis e considera a tradução de Milton Amado (1913-1974) "a mais bela das traduções para o português." e que "conseguiu o feito de transportar esta energia singular desse poema para a língua portuguesa." Milton Amado foi um jornalista brasileiro que ficou conhecido principalmente pelas suas traduções, nomeadamente a de Don Quixote de la Mancha.

A outra tradução que me parece merecer transcrição é a de João Köpke (1852-1926, escritor e tradutor brasileiro.

 O Corvo – tradução de João Köpke

Meia noite seria, hora triste! alquebrado
E de tédio vencido, uma vez, debruçado
Sobre tomo e mais tomo, em que antigos autores
Expuseram saber, que bem raros leitores
Têm hoje, eu meditava, o lido ponderando,
Que em tais livros de antanho andara consultando,
E já, do cochilar, meio ao sono passava,
Quando ouvi de repente um bater, que soava
À porta de meu quarto, ali à mão, baixinho
Como o bater de quem batesse de mansinho,
Batesse de mansinho à porta de meu quarto.
Dentro de mim, mal o ouvi, disse eu: “A horas tais,
Quem pode vir bater à porta do meu quarto?
Alguém que me procura. Há de ser. Nada mais”.


Era então – claramente ainda hoje o relembro!
Bem entrado era então o inclemente Dezembro;
E seu espectro, no chão, cada brasa deixava,
Que, aos poucos, a morrer, no lar agonizava.
Aflito estava eu já por que nascesse o dia;
E, em vão, dessa leitura, ao meu sofrer, queria
Tirar alívio – alívio à crua e dura mágoa;
Alívio, que abrandasse a enorme, funda mágoa
De haver perdido, haver perdido, ó sim, Lenora,
A virgem radiante, a quem saudade chora!
A virgem peregrina, a quem os anjos chamam
Lenora – Aquela a quem, nos coros triunfais,
Lenora, lá no céu, os anjos ora chamam
E nome não terá na terra nunca mais!


E o frouxo farfalhar, que vinha das cortinas
De seda roxa, incerto e mesto, nas retinas
me punha visões tais, e, na alma, tais terrores
Que iguais nunca eu sentira; e em tão cruéis tremores
Me entrava a sacudir que, por conter os saltos
Ao coração – por ver quedar os sobressaltos
Em que dúbio tremia, entrei a repetir,
A repetir sem conta, alheio a repetir:
“Está alguém a bater à porta do meu quarto;
Bate alguém, certamente, à porta do meu quarto;
Alguém que me procura e quer falar. Decerto,
Alguém, que, sem querer, se atrasou. Pois que mais
Pode ser?... É alguém. Há de ser. É, decerto.
É, decerto, isto mesmo. Há de ser. Nada mais”.


A alma se me aquietou assim; e, então, perdendo,
Perdendo a hesitação, afoito fui dizendo:
“Quem quer que vós sejais, ou senhor, ou senhora,
Vosso perdão aqui sinceramente implora
Quem, quase a cochilar, confessa, e tão de manso
Batendo vós à porta, à porta tão de manso
Batendo, tão de manso, à porta do seu quarto,
Mal pôde perceber que à porta do seu quarto
Batíeis”. Neste ponto, à porta dirigindo
Os passos, neste ponto, agora, eu, acudindo
À porta, ao enfrentá-la, abri-a pronto busco;
E, de braço estendido, ao tocar-lhe os umbrais,
Escancaro-a de vez num movimento brusco:
Lá fora, a escuridão. E só. E nada mais.


E, dessa escuridão, cravando o olhar no fundo,
A revolvê-la estive, a revolver-lhe o fundo,
Surpreso, apavorado, hesitante, a sonhar
Sonhos, que não ousou ninguém jamais sonhar.
Mas, o silêncio, mudo: o mesmo sempre. E, a treva,
Calada em frente a mim, nenhum indício a treva
Me dava. Dela só, somente me chegava,
Me chegava ao ouvido em voz, que o murmurava,
Um nome, e em murmúrio, um nome só, Lenora!
Era eu que o murmurava; era eu, e já Lenora
Eis o eco a responder, Lenora repetindo;
Palavra, que só eu, na treva, entre as letais
Angústias da incerteza, em sonhos me afundindo,
Ficara a repetir. Só isso. E nada mais.


Voltando ao quarto, então, com a alma em fogo a arder,
Com pouco ouvi de novo, ouvi baixo bater,
Bem de leve outra vez, mas mais alto um pouquinho,
Mais alto desta vez, mais alto um bocadinho.
“É, com certeza”, eu disse, “é com certeza, agora,
Uma coisa qualquer que bate lá de fora
Nas gelosias. É. Mas será?... Quem o sabe?...
Quem sabe que mistério há nisto? Quem o sabe?...
Sossega, coração! e deixa-me que o veja;
Que, por meus olhos, sonde o que for que ali esteja;
Que sonde o que isto for; que o sonde por meus olhos;
Que o mostre ao meu pavor, e, em linhas naturais,
O fato ponha à luz, mostrando-o claro aos olhos.
É, com certeza, o vento. O vento e nada mais.”


Para a janela, pois, crescendo, eu a escancaro;
E, mal o olhar firmei, logo o vulto deparo
De um corvo senhoril dos bons tempos de outrora,
Que, da lufada em pós, entrando lá de fora,
E circungira e paira e se vai, por fim, pôr,
Sem saudar, nem deter-se ou pousar, se vai pôr,
Com ares de fidalgo ou fidalga, assentado
Bem por cima da porta, ao alto empoleirado
Da porta do meu quarto, em um busto de Palas;
Alcandorado ali sobre o busto de Palas;
Alcandorado ali, do branco busto em cima;
Do branco busto sobre as formas divinais.
Nesse busto pousou, que a minha porta encima.
Pousou; deixou-se estar. Só isso, e nada mais.


Ao ver dessa ave negra o modo assim severo,
Ao ver com que decoro e com que porte austero,
Ali, defronte a mim, tão grave procedia,
Desfez-se num momento aquela fantasia,
Que a mente me assaltara, e transmudou-se em riso.
“Embora”, disse eu, pois, dando expansão ao riso,
“Tosado, embora, cerce o teu penacho veja,
Não quero crer que tal a covardia seja
Tachada punição. Não és um velho corvo,
Repelente e fatal, que foges ao céu torvo.
Certo, um título tens e foros de grandeza;
Tens estirpe e brasões nos reinos avernais.
Dize, pois, qual teu nome entre a ilustre nobreza
De Plutão?” E tornou-me o corvo: “Nunca mais”.


De pasmo me tomei ao ver com tal clareza
Falar essa ave horrenda, embora, com certeza,
Sentido não tivesse, ou pouco ou nulo alcance,
A resposta, que deu assim tão de relance.
De pasmo me tomei, porquanto ninguém pode
Fugir a concordar, ninguém, na vida, pode
Dizer que outro mortal já tivesse a ventura
De ver pousar uma ave, ou outra criatura
Ao alto, sobre a porta, a porta do seu quarto;
Sobre o busto, que encime a porta do seu quarto;
Pousar, deixar-se estar e nada mais; uma ave
Horrenda, que viesse, afrontando hibernais
Rigores de procela, à noite, austera e grave,
Dizer-lhe que no inferno a chamam Nunca mais.


Assustou-me a resposta assim tão bem cabida,
Que rompeu a mudez até aí mantida.
Assustou-me a resposta; e, então, para explicá-la,
Eu me pus a dizer qual quem a medo fala:
“Nestas palavras só consiste certamente
O seu vocabulário; e, nelas, inconsciente,
Reproduz o que ouviu. Com certeza, a algum dono
Infeliz pertenceu. Pode ser que a algum dono
Tivesse pertencido, a quem com teimosia
Perseguisse a desgraça, e, na monotonia
Desse estribilho só, distração procurasse
As dores, que gemia – as dores sem iguais
Do seu sofrer, e a mágoa aos lábios lhe levasse,
Por desabafo e alento, o grito: “Nunca mais!”.


No entanto, o corvo, só, pousado sobre o busto
Quedo, pousado e só, dali de sobre o busto,
Não me deu mais que tal resposta, em que pusera
Talvez toda a sua alma. E nem ao que dissera
Mais nada acrescentou. Nem uma só das penas
Moveu. Não mais moveu de leve uma das penas
Que fosse, a não ser quando eu, mal e mal, baixinho,
E murmuro, falei, mas baixo, bem baixinho:
“Em antes dele já perdi muitos amigos:
Perdido tenho, sim, por vária vez, amigos,
Que foram sem retorno. Irá ele também
Sem retorno, assim como aos caros ideais
A esperança se foi, e, com o dia que vem,
Este irá. Grasna o corvo apenas: “Nunca mais”.


Porém, mais uma vez, essa ave transformando
A tristeza à minha alma em riso a transmudando,
Fiz rodar um assento e dela o pus em frente,
E do busto e da porta em face justamente.
Bem defronte lho pus; e o corpo, no veludo,
Todo o peso largando, afundei; e já tudo
Que estivera a pensar – idéia ou fantasia,
Comecei a prender como elos, que queria
Jungidos, para ver que sentido quisera
Aquela ave ominosa à resposta, que dera,
Inculcar; para ver se encontrava o sentido
Que essa ave de feições e gestos espectrais
Na resposta pusera; – achar com que sentido
No crocitar dizia apenas: “Nunca mais”.


Para tal, eu, sentado, a rever, mas comigo,
O que vira, fiquei, mas a sós, só comigo,
Sem palavra sequer dirigir à agoureira
Ave, que, com o olhar, qual rúbida fogueira,
O âmago ao coração me estava requeimando.
No coxim de veludo a cabeça pousando,
No coxim, que o clarão da luz como um olhar
De cupidez voraz descia a iluminar,
Eu, a gosto, escrutava o que quisera o corvo
Dizer no seu falar, que tinha em tanto estorvo
A fácil compreensão. Nesse coxim, agora,
A fronte eu descansava, em que d’Ela jamais
A fronte pousará qual se pousava outrora.
Não mais se pousará, oh, nunca, nunca mais!


Como que o ar então me pareceu mais denso;
A modo que um perfume ali pairou de incenso,
Que, em turicremo vaso, ao ar silente alcançassem
Serafins, cujos pés em cadência roçassem
A alcatifa, que o chão de meu quarto alfaiava.
E, pois, à inspiração, que, sobre mim baixava,
Cedendo, a me exprobar do pavor, que sentia,
Contra mim revoltado, em voz alta dizia:
“Desgraçado! Teu Deus, teu Deus, por estes anjos,
Teu Deus trégua te dá; teu Deus por estes anjos,
Remédio à dor te manda. Esquece de Lenora
A perda, e empina a taça, em que as dores mortais
Tu podes afogar. Risca dessa Lenora
Na mente o nome”. E grasna o corvo: “Nunca mais”.


“Profeta”, eu disse então, “ave ou demônio sejas,
Profeta mesmo assim! Quer vindo aqui tu sejas
Atentar-me, ou lançado o sopro das borrascas
Te houvesse a esta plaga – aflito, mas das vascas
Do desespero livre; – ao ermo desta plaga,
Que um poder infernal no seu eflúvio alaga;
Ao sei deste lar, onde o terror domina –
Se tem a dor, que assim saudade me propina,
Lenitivo, que a acalme, oh, di-lo, que to imploro!
Oh, dize-me se tem este luto, em que choro,
Trégua, que ao meu sofrer as torturas abrande;
Lenitivo, que à dor embote os seus punhais
E, à saudade, que peno, o esquecimento mande.
Oh, di-lo, corvo, di-lo!” E o corvo: “Nunca mais”.


“Profeta”, eu disse então, “ave ou demônio sejas,
Profeta mesmo assim e como quer que o sejas!
Pelo Céu, que nos cobre, e o Deus, que veneramos,
Por tudo quanto os dois por mais caro prezamos,
Dize, dize à minha alma, a que a dor tanto preme,
À alma, que esta saudade infinda e crua geme,
Dize por compaixão se, no Éden distante,
Em seus braços verá a Virgem fulgurante;
Aquela Virgem santa, a que, no céu, Lenora
Chamam, e que ninguém na terra chama agora;
A Virgem, por quem peno – a Virgem, que a saudade,
Me traz sempre na mente em sonhos perenais!
Oh, dize se algum dia abraçá-la, em verdade,
Lá no céu, poderá!” E o corvo: “Nunca mais”.


“Que seja essa resposta a nossa despedida,
Ou ave ou tentador!” bradei com a voz erguida,
Num salto em pé me pondo. “Oh, volta à tempestade!
Volta à noite do inferno! Em minha soledade
Que eu fique sempre só! Não deixes uma pena,
Nem uma pena só, nem uma negra pena
Das tuas, em penhor desta mentira atroz,
Que acabas de afirmar com refalsada voz!
De sobre o busto sai! O vulto, eia, retira
De sobre a minha porta! O adunco bico tira
Daqui do coração, onde o cravaste! Oh, vai-te
Embora e deixa em paz meus tristes penetrais!
Ou ave ou tentador, deixa-me em paz! Oh, vai-te!”
E, imóvel, diz o corvo apenas: “Nunca mais!”.


E, sem mais se mover, ali se tem pousado,
Imóvel sempre, o corvo; ali, alcandorado
De Palas sobre o busto – erguido ao alto – acima
Da porta do meu quarto – e mudo e quedo a encima!
E os olhos seus são como os olhos de um demônio
Absorto a maquinar – são olhos de um demônio!
E, da lâmpada a luz, sobre ele em cheio desce
O clarão com fulgor, que vivo resplandece,
E lhe estampa no chão a dura e negra sombra!
E minha alma, oh, horror! da treva dessa sombra,
Que flutua no chão pairando eternamente,
Minha alma do negror, que os giros infernais
Adensam no voar, que paira eternamente,
Nunca mais se há de erguer! Ai, nunca! Nunca mais!

segunda-feira, 9 de abril de 2018

O Corvo - outra tradução

A tradução de O Corvo, de Edgar Allan Poe, feita por Fernando Pessoa é um magnífico exemplo de como é possível transpor a ideia, o cenário e a acção entre duas línguas tão distintas, mantendo a musicalidade e a emoção. Pelo contrário, outro grande escritor da língua portuguesa deixou-nos o que classifico de um péssimo exemplo. É a minha opinião. Transcrevo a tradução de O Corvo por Machado de Assis:

O Corvo
por Edgar Allan Poe, traduzido por Machado de Assis

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranquilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: "Nunca mais."

“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!











 Quanto a mim, falta-lhe ritmo, melodia, as rimas são pobres e perde-se completamente o ambiente de tristeza e terror que o original tem e que Fernando Pessoa soube preservar. A métrica adoptada, tão diferente da do original, quebra o ritmo, ao passar de estrofes de 5 versos longos (~14 ou 15 sílabas) e um curto (7 sílabas) para uma sequência de 8, 8, 14, 8, 10, 10, 10, 8, 12, 8, num total de 10 versos por estrofe (tanto quanto consegui medir. Há mesmo diversos versos nesta tradução que considero poeticamente horríveis. Por exemplo: "Disse; a porta escancaro, acho a noite somente" ou "De algum mestre infeliz e acabrunhado / Que o implacável destino há castigado" ou ainda "Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!" e até o verso final "Não sai mais, nunca, nunca mais!" Machado de Assis pode ser um grande escritor, mas teve um momento infeliz ao tentar esta tradução.

domingo, 8 de abril de 2018

The Raven

Eis o original inglês de Edgar Allan Poe. Hoje em dia é fácil encontrar na net este poema, assim como quase tudo o que queiramos encontrar. O caso do soneto que apresentei há dias (Eu nunca tive a mais pequena queixa), que não foi possível encontrar por busca do Google, excepto a referência de alguém que também desconhecia a autoria, é raro. As referências ao poema The Raven e as suas traduções são muito numerosas. Nos anos 50 do século passado não era assim. O meu interesse no poema foi despertado pela tradução de Fernando Pessoa, mas as tentativas de encontrar o original inglês não deram qualquer resultado, principalmente porque não procurei em bibliotecas, mas apenas em livrarias. Felizmente, uma das minhas irmãs tinha então um namorado inglês que teve a amabilidade, numa deslocação a Inglaterra, de procurar e enviar-me por carta o texto original de The Raven. Ainda conservo essa carta, mas só agora pude confirmar que o texto que ele me enviou, escrito à máquina, estava absolutamente correcto. Ei-lo:

The Raven
By Edgar Allan Poe

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore —
    While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
“’Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber door —
            Only this and nothing more.”

    Ah, distinctly I remember it was in the bleak December;
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
    Eagerly I wished the morrow; — vainly I had sought to borrow
    From my books surcease of sorrow — sorrow for the lost Lenore —
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore —
            Nameless here for evermore.

    And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me—filled me with fantastic terrors never felt before;
    So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
    “’Tis some visitor entreating entrance at my chamber door —
Some late visitor entreating entrance at my chamber door; —
            This it is and nothing more.”

    Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
“Sir,” said I, “or Madam, truly your forgiveness I implore;
    But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
    And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you” — here I opened wide the door; —
            Darkness there and nothing more.

    Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before;
    But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
    And the only word there spoken was the whispered word, “Lenore?”
This I whispered, and an echo murmured back the word, “Lenore!” —
            Merely this and nothing more.

    Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
    “Surely,” said I, “surely that is something at my window lattice;
      Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore —
Let my heart be still a moment and this mystery explore; —
            ’Tis the wind and nothing more!”

    Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore;
    Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
    But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door —
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door —
            Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
“Though thy crest be shorn and shaven, thou,” I said, “art sure no craven,
Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore —
Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore!”
            Quoth the Raven “Nevermore.”

    Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning — little relevancy bore;
    For we cannot help agreeing that no living human being
    Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door —
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,
            With such name as “Nevermore.”

    But the Raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
    Nothing farther then he uttered — not a feather then he fluttered —
    Till I scarcely more than muttered “Other friends have flown before —
On the morrow he will leave me, as my Hopes have flown before.”
            Then the bird said “Nevermore.”

    Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
“Doubtless,” said I, “what it utters is its only stock and store
    Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
    Followed fast and followed faster till his songs one burden bore —
Till the dirges of his Hope that melancholy burden bore
            Of ‘Never — nevermore’.”

    But the Raven still beguiling all my fancy into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust and door;
    Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
    Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore —
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
            Meant in croaking “Nevermore.”

    This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom’s core;
    This and more I sat divining, with my head at ease reclining
    On the cushion’s velvet lining that the lamp-light gloated o’er,
But whose velvet-violet lining with the lamp-light gloating o’er,
            She shall press, ah, nevermore!

    Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
    “Wretch,” I cried, “thy God hath lent thee  —  by these angels he hath sent thee
    Respite—respite and nepenthe from thy memories of Lenore;
Quaff, oh quaff this kind nepenthe and forget this lost Lenore!”
            Quoth the Raven “Nevermore.”

    “Prophet!” said I, “thing of evil! — prophet still, if bird or devil! —
Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
    Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted —
    On this home by Horror haunted — tell me truly, I implore —
Is there — is there balm in Gilead? — tell me — tell me, I implore!”
            Quoth the Raven “Nevermore.”

    “Prophet!” said I, “thing of evil! — prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us — by that God we both adore —
    Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
    It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore —
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore.”
            Quoth the Raven “Nevermore.”

    “Be that word our sign of parting, bird or fiend!” I shrieked, upstarting  —
“Get thee back into the tempest and the Night’s Plutonian shore!
    Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
    Leave my loneliness unbroken! — quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!”
            Quoth the Raven “Nevermore.”

    And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
    And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming,
    And the lamp-light o’er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
            Shall be lifted — nevermore!

sábado, 7 de abril de 2018

O Corvo

Outra poesia que se conta entre as minhas preferidas e da qual me lembro de tentar decorar já há mais de 60 anos, andava eu nos primeiros anos do Liceu. Acabei por a saber de cor completa, mas nos últimos anos por vezes tenho de recorrer ao texto como se fosse uma cábula por me faltarem alguns trechos. Esta poesia é O Corvo, de Allan Poe, na tradução de Fernando Pessoa. Transcrevo de imediato o poema integralmente, deixando a história da minha relação com ele e outras considerações para depois.

O Corvo

Edgar Allan Poe
tradução de Fernando Pessoa

Numa meia-noite agreste, quando eu lia lento e triste
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente em meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
    É só isso, e nada mais.”

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
    Mas sem nome aqui jamais!

Como a tremer, frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
    É só isso, e nada mais.”

E, mais forte num instante, já não tardo ou hesitante,
“Senhor – eu disse, – “ou senhora, decerto me desculpais,
Mas eu ia adormecendo quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…” E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
    Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido, receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse: o nome d’ela, e o eco disse os meus ais
Isto só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e que são estes sinais.
Meu coração se distraia pesquisando estes sinais.
    É o vento, e nada mais.”

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
    Foi, pousou e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus gestos rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu “mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.
    Disse o corvo, “Nunca mais”.

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais,
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais
    Com o nome “Nunca mais” .

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que esta frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido murmurei lento, “Amigos, sonhos  - mortais
Todos, todos já se foram, amanhã também te vais.”
    Disse o corvo, “Nunca mais”.

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
“Por certo”, disse eu, “são estas suas vozes usuais
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais.
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
    Era este “Nunca mais”.

Mas fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais
    Com aquele “Nunca mais”.

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais.

Fez-se então o ar mais denso, como cheio de um [dum] incenso
Que anjos dessem, cujos passos soam musicais.
“Maldito!” a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais.
    Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demónio ou ave preta – !
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!”
    Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demónio ou ave preta – !
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
    Disse o corvo: Nunca mais!

“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!” eu disse. “Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais.
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais,
Tira o vulto de meu peito e a sombra dos meus umbrais.
    Disse o corvo, “Nunca mais”.

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,
E a minh’alma, dessa sombra, que no chão há mais e mais,
    Libertar-se-á… nunca mais!

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Liberdade

Poesia de Armindo Rodrigues

Lembro-me de meu pai a recitar. Ficou-me no ouvido, como se costuma dizer. Mais propriamente, ficou-me na memória. É um poemas muito belo e muito significativo.

Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.
É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
e, mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.

Armindo Rodrigues

O meu pai comparou um dia este poema de Armindo Rodrigues com o Liberdade de Fernando Pessoa, considerando o de Armindo Rodrigues muito superior. A opinião pode estar certa, mas há que ver que a intenção de Fernando Pessoa era muito diferente e dificilmente se justifica sequer fazer uma comparação.São poemas diferentes, com estilos diversos e sensibilidades não comparáveis.

terça-feira, 3 de abril de 2018

Ainda sobre o soneto de autor desconhecido

Como deixei dito, desconheço quem seja o autor do soneto "Eu nunca tive a mais pequena queixa" e uma busca no Google não me deu qualquer informação. Encontrei apenas em:
http://amormaisqueperfeito.blogspot.com/2007/10/ando-por-c.html
a mesma dúvida sobre a autoria e uma versão com algumas pequenas diferenças. Parece-me que a minha versão, embora de memória, será mais correcta, pois respeita mais perfeitamente a métrica.

domingo, 1 de abril de 2018

Soneto

Eis um soneto que recordo ser recitado pela minha mãe e de que não sei o autor. Uma busca no Google só me permitiu saber que há quem partilhe da minha dúvida. Pensava que talvez fosse de Florbela Espanca, mas a consulta dos seus sonetos completos mostrou que não. Continuo na ignorância, mas o soneto é tão belo e o seu sentido tão justo que, mesmo de autor desconhecido, não tenho dúvidas em o introduzir como primeira mensagem deste blog.

Eu nunca tive a mais pequena queixa
D’alguém que eu veja que me vai fugir.
Só quem nos não quer bem é que nos deixa
E quem nos não quer bem, deixá-lo ir!

Que faz do seu orgulho o que se queixa?
Falha o presente, temos o porvir.
E a um coração que um dia se nos fecha
Não nos resta o direito de o abrir.

Nada a ninguém faz falta, eis a verdade,
E uma afeição é apenas um detalhe
Na nossa vida cheia de ansiedade.

E por cada afeição que nós percamos,
Por cada coração que se nos feche,
É uma grande certeza que ganhamos.